O
TRATAMENTO CERIMONIOSO DE SEGUNDA PESSOA EM DISCURSO RELIGIOSO: UM CASO DE
TRADIÇÃO DISCURSIVA
Por
Flavio Lima
RESUMO: Este
artigo focaliza o uso da forma pronominal tu com concordância, nos
contextos de formalismo e cerimonialismo do discurso religioso. Foi analisado
um corpus de fala constituído de orações dos fiéis evangélicos durante
cultos religiosos a fim de testar o comportamento da forma pronominal
procurando verificar a hipótese de que, nesses contextos, haveria uma tendência
à produção da forma culta (tu com concordância). Os resultados gerais
apontam para o uso categórico dessas formas no corpus selecionado e
revelam, também, que se trata de um caso de Tradição Diacursiva do gênero oral
em questão (orações religiosas).
ABSTRACT: This article focuses on the use of the
pronoun form you agree with, in the contexts of formalism and ceremonialism of
religious discourse. We analyzed a speech corpus consisting of prayers
of the faithful evangelicals during religious services in order to test the
behavior of pronominal form trying to verify the hypothesis that, in these
contexts, there was a tendency to produce cultured fashion (you agree with).
The overall results point to the use of these categorical forms in the corpus
selected and also show that this is a case of oral Discursive Tradition of the
genre in question (religious prayers).
Introdução
O
presente trabalho tem a finalidade de analisar as forma pronominal tu no discurso religioso. Percebeu-se
que a forma, neste contexto, é usada com concordância verbal, contrariando a
tendência apontada por estudos recentes de expressão de (tu) sem concordância e substituição desse pronome por você.
Assim,
pretende-se investigar a ocorrência dessas formas no discurso religioso, a fim
de se analisar se, nesse contexto, o falante obedece à tendência atual (LOPES,
2007; SILVA e BARCIA, 2007), ou é influenciado pela atmosfera religiosa, de
formalismo e cerimonialismo, tendendo a produzir estruturas com tu com concordância. Esse formalismo seria
marcado em contexto em que os fiéis se direcionam a Deus – a segunda pessoa.
Haveria nesse diálogo uma pressão hierárquica que leva o suplicante a usar uma
estrutura mais formal.
O
estudo será baseado em uma análise qualitativa e quantitativa de sermões e
orações proferidas dentro dos templos evangélicos e obtidas na internet.
Tomamos
como base a questão levantada por Lopes (2007), a qual declara que as formas de
tratamento tu e vós ainda poderiam existir. O pronome “vós”, tratado em estudos
anteriores, apesar de não ser usado, ainda poderá ser encontrado nos templos
religiosos por ser tratar de um uso mais formal (arcaizante). Entretanto, para
o presente estudo, limitar- nos-emos em estudar tal forma a partir de uma
revisão teórica, uma vez que só haveria contexto para sua produção em sermões,
nos quais o pregador se dirija ao povo, aos fiéis. O corpus estudado constitui-se em orações, conversas formais entre o
fiel com Deus, situação em que só se pode evidenciar a concorrência entre a
forma tu com concordância e a mesma
sem concordância.
Para
a composição do corpus, foram
selecionados sete vídeos de orações evangélicas, – no endereço www.youtube.com.br, uma vez que desconhecemos a existência de
um material desse tipo nas academias. Todos foram escutados a fim de que
os dados fossem coletados.
Com
os dados coletados passou-se a contagem, desenvolvendo-se a análise
quantitativa.
Depois
das análises, levou-se em consideração a necessidade de se tomar como
pressuposto teórico a teoria da Tradição Discursiva proposta por Eugênio
Coseriu in Kabatek (2006). Tal teoria apresenta uma explicação do porquê
de determinada forma passar a ser usual em detrimento de outra em certo gênero
discursivo oral ou escrito; é um ato linguístico que relaciona um texto com uma
realidade, uma situação, mas relaciona também esse texto com outros textos de
uma mesma tradição. Consideramos que a expressão de concordância no uso do tu é, na verdade, Tradição Discursiva do
discurso religioso, em contexto de cerimonialismo no diálogo com a entidade
superior, Deus.
1. Revisão gramatical.
As diversas gramáticas normativas não divergem quanto ao
uso dos pronomes “tu” e “vós” e como eles se apresentam, ou seja, como
caracterizadores universais de segunda pessoa do discurso (com quem se fala). O
quadro pronominal tradicional, no qual estão contempladas tais formas, ainda é
sustentado pelos gramáticos como Bechara (1999), Cunha & Cintra (1999),
Rocha Lima (1991); entre outros.
A gramática normativa prescreve que são duas as pessoas
determinadas do discurso: primeira eu
- a pessoa correspondente ao falante - e segunda tu - correspondente ao ouvinte - como também seus plurais “nós” e
“vós”.
Veja, a seguir, o quadro adotado pela gramática,
retirado de Cunha (1999):
Singular
|
Plural
|
|
1ª pessoa
|
EU
|
NÓS
|
2ª pessoa
|
TU
|
VÓS
|
3ª pessoa
|
ELE / ELA
|
ELES / ELAS
|
Azeredo (2000, p. 121)
contempla, no seu quadro pronominal, a forma “você” como pertencente ao quadro
de pronomes pessoais do caso reto: “O indivíduo a que o eu se dirige – segunda pessoa,
do singular ou plural (tu/vós, você/vocês).”
Embora o quadro esteja
completo, o “vós” tem desaparecido da linguagem corrente do Brasil e de
Portugal. Como aponta os gramáticos. Cunha e Cintra (1985) comenta sobre a
presença do pronome vós sendo usado
em alguns discursos:
O pronome vós
praticamente desapareceu da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Mas em
discursos enfáticos alguns oradores ainda se servem da 2ª pessoa do plural para
se dirigirem cerimoniosamente a um auditório qualificado. (CUNHA e CINTRA,
1985, p. 277)
Mesquita (1995) aponta como raridade na linguagem coloquial
do português do Brasil. Faraco & Moura (2001) também reconhecem que esse
pronome é bastante raro e declaram:
O pronome vós, comum
em discursos cerimoniosos e no texto religioso, é bastante raro na linguagem
corrente do Brasil atual. Atualmente pode aparecer com sentido irônico:
Ex: Abandonai toda esperança vós que entrais nos supermercados da
assistência médica. A compra de um plano de saúde exige tantos cuidados quanto
adquirir um carro usado. (Veja) – (FARACO e MOURA,
2001, p. 288)
Em relação ao pronome
“tu”, esses autores afirmam que o uso do tu sem concordância está
ocorrendo em várias regiões do Brasil, mas são contundentes em declarar que, no
Rio de Janeiro, é comum ocorrer o cruzamento coloquial entre o pronome de
tratamento de segunda pessoa com a forma verbal de terceira pessoa quase
categoricamente. Observe, a seguir, um exemplo desses autores e outro do corpus
pesquisado:
Ex: “Tu não me enrola, não.” (Folha de São Paulo) - (FARACO e
MOURA, 2001, p. 288)
“Tu vai comer aonde?” (AF – 2009).
A gramática normativa sinaliza que constitui em erro
esse tipo de construção, pois o verbo tem que concordar com o sujeito que lhe
serve de base.
Mesquita (1996, p. 221) retoma
as afirmações de Cunha e Cintra (1985), expostas na Nova Gramática do Português
Contemporânea. Dizem:
“No português do Brasil, o uso de tu restringe-se ao
extremo Sul do País e alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente
delimitados. Em quase todo o território brasileiro, foi ele substituído por você
como forma de intimidade. Você também se emprega, fora do
campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou de superior para
inferior.” – (CUNHA e CINTRA – 1985)
2. Estudos recentes.
Alguns autores têm discutido a respeito das formas de
tratamento, porém, daremos uma atenção especial ao estudo de Lopes (2007) in
Vieira e Brandão (2007, p. 115), uma vez que ela apresenta os
resultados de sua pesquisa sobre a variação em questão. Observe o quadro
pronominal proposto pela autora:
Pessoa
|
Pronome
Sujeito
|
Pronome
Complemento direto
|
Possessivos
|
P
1
|
Eu
|
me
|
Meu
/ minha
|
P
2
|
Tu
/ você
|
Te,
lhe, (se), você
|
Teu/tua/seu/sua / de você
|
P
3
|
Ele
/ ela
|
O,
a, (se) / lhe / ele (a)
|
Seu
/ sua / dele (a)
|
P
4
|
Nós
/ a gente
|
Nós
/ a gente
|
Nosso
(a) / da gente
|
P
5
|
Vocês
|
Vocês
/ lhe / se
|
Seu(s)/
sua(s)/ de vocês
|
P
6
|
Eles
/ elas
|
Os,
as (se) / lhes / eles (as)
|
Seu(s)
/ sua(s) / deles(as)
|
Lopes (2007) propõe uma
re-organização em um novo quadro pronominal, contudo, deixa bem claro que este
quadro está longe de ter uma verdadeira coerência interna e, principalmente,
dar conta da realidade concreta do português no Brasil.
Um dos pontos principais,
como afirma a autora, é de que o pronome “vós”, tratado em estudos anteriores,
apesar de não ser usado, ainda poderá ser encontrado nos templos religiosos por
ser tratar de um uso mais formal (arcaizante). Este, tendo como base os
escritos religiosos, é ouvido em sermões e orações proferidas por falantes de
diversos segmentos educacionais. Esta hipótese também é sustentada por
gramáticos como Cunha e Cintra (1995), re-afirmada por Mesquita (2001), entre
outros.
Lopes (2007) conclui que
se deve ensinar as variações como também os arcaizantes já que, ao se reter o
ensino do “vós” e “tu”, poder-se-ia dificultar a leitura de grandes obras como
a Carta de Caminha. A autora declara:
Defende-se a apresentação do que é normal, usual e frequente no
português brasileiro, sem perder de vista o que está disponível na nossa
literatura, na nossa língua, na nossa história. São os diferentes saberes envolvidos, “saberes
lingüísticos na escola”: a norma vernácula, o saber descritivo/prescritivo e o
saber do professor. Um saber não anula o outro. (friso meu).
Como se percebe, há muito ainda por descrever,
explicar, entender e, parafraseando João Ubaldo, “vamos estudando, somos
ignorantes, havemos de aprender. Nosso consolo é que muitas das coisas que nos
afligem (ou que afligem a gente) devem afligir vocês também”. (LOPES,
2007, p. 116)
Além de Lopes (2007), outros autores se interessaram
por estudar a variação entre o “tu” e “você”. Realizando estudos em Minas
Gerais, Silva & Barcia (2002) perceberam que o uso de “você” foi mais
abrangente no século XVIII. Porém, no século XIX a forma pronominal “tu” é a
mais empregada. Declara Silva & Barcia (2002):
O quarto grupo - relação entre emissor-destinatário
- evidencia que a forma tu suplanta
o uso de você tanto nas
relações pessoais simétricas de amizade (amigos, primos, etc.) quanto nas
relações íntimas de família (avós, netos). Todavia, verifica-se que a forma você, uma variante em vias de
gramaticalização, ocorre preferencialmente nas relações íntimas de família,
marcadas, ainda, por uma relação assimétrica (superior-inferior), basicamente,
entre avô e neto e entre pai e filho (.99). O caráter de uma certa reverência
ou respeito advindo da forma original Vossa
mercê ainda não se tinha perdido por completo na variante vulgar você. (SILVA e BARCIA, Ao Pé da
Letra, p. 7)
Da mesma forma que, no caso
estudado pelas autoras, no qual o falante usa o “tu” e o “você” por grau de
intimidade (superior/inferior; formal/informal) (MOTA, 2008 in SILVA e BARCIA,
2002), o religioso, também tende a usar
o “tu” em uso mais formal, por Deus se tratar de um ser superior.
Outros linguistas e
gramáticos defendem a ideia de que o pronome tu foi derribado pelo você
na variedade brasileira do português. Esse fenômeno, segundo Duarte (1993), está
relacionado com outras variações no sistema do português. Ela defende a hipótese
de que, com o emprego do pronome você
em lugar do pronome ‘tu’, deu-se a redução no quadro de desinências verbais. De
um paradigma formado de seis pessoas distintas, passou-se a um paradigma de
quatro formas: eu canto, você/ele canta, nós cantamos, vocês/eles cantam. Esse
paradigma coexiste com outro de três formas, decorrente do uso da expressão a
gente, em lugar do pronome nós estudado por Lopes (2007).
Essa redução pode ser
observada no quadro a seguir proposto no livro viver e aprender- português - 3ª
Série – cujos autores são Cloder Rivas Martos e Joana D’arc
Gonçalves de Aguiar, (pág. 177). Embora seja um livro do primeiro segmento do
Ensino fundamental, considera-se de grande relevância esta nova proposta, pois
pode se constituir em uma mudança de postura em relação ao ensino das formas
pronominais pouco usadas, o que contrariaria a visão se Lopes (2007) sobre esse
assunto.
ACORDAR
Presente
|
Pretérito
|
Futuro
|
Eu acordo
|
Eu acordei
|
Eu acordarei
|
Tu acordas
|
Tu acordaste
|
Tu acordarás
|
Ele, ela acorda
|
Ele, ela acordou
|
Ele, ela acordará
|
Nós acordamos
|
Nós acordamos
|
Nós acordaremos
|
Eles, elas acordam
|
Eles, elas acordaram
|
Eles, elas acordarão
|
Como pode ser observado, a forma vós é retirada do quadro. O autor a
menciona no capítulo de pronomes pessoais do caso reto como uma forma
“atualmente pouco usada”. No capítulo referente a verbo, no qual está inserido
o quadro acima, não há menção a tal forma e as atividades propostas obedecem ao
paradigma utilizado no quadro. Ou seja, em nenhum momento, neste capítulo, o
aluno entra em contato coma flexão verbal de segunda pessoa do plural. Essa
situação vai de encontro à proposta de Lopes (2007) que discute a necessidade
de que o vós seja mantido nos quadros
gramaticais para a manutenção do conhecimento.
Na próxima seção,
apresentaremos alguns conceitos da teoria que norteou esta pesquisa (Tradição
Discursiva).
3.
Pressupostos teórico-metodológicos
Como dito na introdução,
deseja-se justificar a preferência da expressão de tu com concordância como reflexo de tradições discursivas
religiosas.
Segundo
Kabatek (2006, p. 512):
Tradição Discursiva (TD) é a
repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de
escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável).
Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer
elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre
atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente
entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais)
que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos
empregados.
Company
Company (2002) discute o fato de um fenômeno poder ter sua aplicabilidade
diferenciada a depender do gênero do discurso, ou seja, o gênero discursivo
pode ser condicionante tanto da criação das inovações sintáticas quanto de sua
difusão. Essa discussão nos interessa, uma vez que se entende que os gêneros
orais religiosos, por serem produzidos em contexto de extrema cerimônia, podem
ser condicionantes do uso da estrutura tu
com concordância.
Na
tentativa de relacionar a TD à mudança linguística, Kabatek (2006) aponta que
as TDs podem “frear ou acelerar” mudanças linguísticas. Determinados tipos de
textos, segundo ele, exigem a manutenção de certas fórmulas ou seleção de
“variedades”. No caso da presente pesquisa, cabe a discussão sobre a
possibilidade das TDs religiosas se constituírem em “freio” para o processo de
mudança linguística apontada por Lopes (2007), uma vez que, no contexto
religioso o tu está sendo usado
com concordância, opondo-se a tendência da variação tu sem concordância
apontada por estudos recentes.
Na
seção seguinte, passaremos a mostrar os resultados obtidos com a pesquisa nas
orações retiradas na internet.
4.
A forma "tu" no discurso religioso.
Sobre as formas de segunda pessoa, Lopes (2007) declara (1)
ser um equívoco “deixar de apresentar aos alunos o atual sistema em toda sua
complexidade” como também “não mencionar a existência dos pronomes em desuso”
ocasionando um dano ainda maior. (2) “que deve se tratar de um conhecimento
passivo que precisa estar disponível, para que seja possível ler um texto de
sincronias passadas (o cancioneiro medieval ou poesia trovadoresca dos
primeiros tempos de nossa história, a Carta
de Caminha, a poesia, os romances do amigo).” Nós vamos além disso,
ampliando os exemplos citados, pois devemos considerar tal conhecimento
necessário para a compreensão também dos textos bíblicos e do discurso
religioso de um modo geral, ou seja, as formas “tu” e “vós” participam do
cotidiano linguístico dos cristãos.
Baseando-se na afirmação de Silva & Barcia (2002),
percebe-se que o falante escolhe os pronomes de acordo com o grau cerimonioso
ou de intimidade. Ao se falar com um co-igual, é marcante a presença da
variante não padrão (tu sem concordância), porém, ao se falar com Deus, através
de orações, escolhe-se a forma padrão “tu com concordância”.
Observe os exemplos a seguir:
a)
“Senhor, tu que habitas
no alto e sublime trono... ouve meu clamor” (AF – 2009).
b) “irmão, tu sabe (b’) que Deus pode te salvar ... então, diga para ele: Senhor tu
tens (b’’) todo o poder e podes me livrar!” (AF – 2009)
c) “Deus soberano e fiel, que tens
todo o poder em tuas mãos.” (JM – 2009)
Nos exemplos apresentados percebe-se a presença marcante
da variante padrão “tu” com concordância ao invés do uso da variante não-padrão
(tu sem concordância). No exemplo “b”
o falante profere na mesma sentença a variante não-padrão e a variante padrão.
Observa-se em b’ o uso da variante não-padrão, no diálogo do falante com o
público, ou seja, seus co-iguais; contudo, ele escolhe a padrão para ensinar
como o indivíduo inicia uma oração (conversa) com Deus (b’’). A hipótese de
Silva & Barcia (2007) aplica-se perfeitamente ao exemplo, pois declaram que
o falante escolhe o pronome de acordo com o grau de intimidade; no caso citado,
o seu interlocutor é Deus. Por ser Deus um ser considerado supremo, divino,
santo, superior, escolhe-se usar a variante padrão.
No caso dos exemplos a e c, o falante está em
pleno contato com seu interlocutor que é Deus e, por isso, tende a usar a
variante padrão “tu” com a devida concordância. Entendemos que a forma
não-padrão (expressão de tu sem
concordância) evidencia o vernáculo do falante (b’), que, segundo Labov (1994),
é a língua isenta de influências externas. Provavelmente, em seu dia-a-dia,
esse falante produza tu sem
concordância, mas no contexto com um ser superior (Deus) tenderá a usar o tu
com concordância, por conta de uma Tradição nesse discurso, ou seja, envolvido
no cerimonialismo, esse falante tende a manter a “fórmula” tu com
concordância conforme aponta Kabatek (2007).
A expressão de tu
com concordância, evidenciada em b’’, para nós, é fruto do
enquadramento do falante na situação de formalismo religioso, no contexto em
que ele se sente totalmente inferior à entidade com a qual fala. Isso quer
dizer que o uso dessa variante é justificado pela tradição discursiva do gênero
oral no qual foi produzida. Ele deixa de discursar seu sermão, no qual se
dirigi a co-iguais, e passa a criar um contexto de oração, súplica; situação em
que se estabelece a tradição discursiva do discurso religioso.
A partir de agora, analisar-se-á o corpus estudado.
Foram selecionados sete (7)
vídeos de orações. Quando pesquisou-se as formas pronominais nas orações
proferidas, percebeu-se que, em todos os vídeos pesquisados, há 100% do uso do
pronome “tu” obedecendo à norma culta (com concordância), todos eles relativos
a Deus, ou seja, uso categórico.
Os dados apresentados
abaixo foram retirados desses vídeos.
1. Trechos retirados de (LM – 2009)
a)
“nós nos
curvamos diante de Ti, pois tu és Senhor, tu
és Senhor e Rei.” (LM-2009)
b)
“Deus, o Senhor
sabe da condição de cada um, cada coração que está aqui nessa hora Pai. Tu
sabes, Senhor, da condição de cada vida que se encontra nesta hora.
Tu
sabes, Senhor, a condição de cada vida que se encontra aqui nesta
noite, neste lugar.” (LM – 2009)
c)
“...mas Senhor, tu
és um que pode curar, tu és um Deus que pode trazer vida, tu
és um Deus que podes
trazer a paz!” (LM – 2009)
d) “Abra,
Senhor, o nosso entendimento para entender a tua palavra, para entender a tua
grandiosidade, para saber, Senhor, que tu não és aquele que está
distante.” (LM – 2009)
e)
“tu podes, Senhor sondar o meu
coração agora! (LM – 2009)
f)
“pois tu sabes Senhor que as vezes até
mesmo um sorriso nos lábios pode estar escondendo amargura, pode estar escondendo a tristeza.”
g)
“Mas Senhor tu és Deus que podes mudar, tu és
um Deus que podes trazer
vida! Tu és um Deus que podes trazer alegria!”
2. Trecho da oração de (IEP – 2009)
h)
“Óh, Deus, tu
que habitas em um alto e sublime trono, olha para nós! Queremos te
louvar, te exaltar nesta noite!”
i)
“Óh Deus! Vem
enxugar nossas lágrimas... vem restaurar tua igreja. Tu podes curá! Tu
tens tudo o poder!”
j)
“Jesus amado!
Manda seus anjos aqui para nos proteger! Envia uma legião de anjos para nos
proteger papai! Tu tens a
espada de fogo! Tu sabes de
todas as coisas!”
k)
“Estamos
celebrando este culto a ti papai! Vem com teu poder e glória... pois tu mandas brasa viva do altar!”
l)
“Jesus amado,
vem nos ajudar... pisa na cabeça do diabo! Tu
tens todo o poder papai!”
3. Trechos da oração de (EF – 2009)
m) “Porque
sabemos Deus, que tu és o
criador que criou os céus e a terra!” (EF – 2009)
n)
“tu, Senhor, que visitas o pobre, o aflito, socorre-nos nesta noite!” (EF
– 2009)
4. Trechos da oração de (PJ – 2009)
o)
“salva a minha
casa Senhor, salva o meu lar. Pois tu
tens poder, tu podes tudo!”
p)
“Oh Soberano
Deus, tu és supremo, tu és tremendo, exaltado entre
as nações!”
5. Trechos da oração de (PMV – 2009)
q)
“Eu quero agora
rasgar o meu coração. Tu sabes
Deus aonde eu preciso.”
6. Trechos da oração de (PAV – 2000)
r)
“Senhor Jesus, O
Senhor é forte! Tu és Deus de
milagres! Tu és Deus que
restaura a nossa vida.”
7.
Trecho da oração
de (APV – 2009)
s)
“Queremos
caminhar por onde o Senhor caminha, por onde o Senhor caminhou, por onde o
Senhor caminha hoje. Porque tu estás conosco!”
t)
“nós queremos deixar tudo no teu altar Senhor,
para que tu faças o que quiseres com a nossa vida!”
u)
“Para que tu
faças como quiseres
com a nossa vida!”
v)
“do teu jeito,
da tua maneira, quando quiseres
se quiseres, Senhor.”
w)
“para mim o
viver é Cristo.. óh és tu
Senhor!”
x)
Percebeu-se que,
em todos os dados analisados, o falante usou o “tu” e fez devidamente a
concordância, ou seja, o uso é categórico. É importante destacar que até mesmo
nos trechos em que o “tu” é elíptico, o verbo foi flexionado na segunda pessoa,
como vemos em “Mas Senhor tu és Deus que podes mudar, tu és
um Deus que podes trazer vida!
Tu és um Deus que podes trazer alegria!”.
Entendemos que os falantes usam essa forma com naturalidade, e ressaltamos que
essa é uma prática contrária à tendência atual, como apontam estudos gramaticais
(FARACO e MOURA - 2001).
A forma tu
com concordância é amplamente usada pelos falantes, marcados pela
cerimoniosidade e grau de intimidade com o interlocutor (Deus), não havendo, no
corpus, a variante não-padrão (tu
sem concordância) por motivo de o interlocutor não ser um co-igual e por se
tratar de uma Tradição Discursiva.
A
Tradição Discursiva desse gênero oral explica tal fenômeno. Os falantes
reproduzem formas padrão, muitas vezes diferentes das representativas de seu
vernáculo, pois estão inseridos numa comunidade de fala cuja referência é o
texto bíblico, formal e tradicional.
5.
Considerações
finais
Conclui-se,
então, que mediante os dados apresentados, a forma tu com concordância é usada pelos falantes, em grande proporção,
por estar relacionada a um ato cerimonioso e íntimo com seu interlocutor, neste
caso, Deus.
A
Tradição Discursiva no formalismo religioso faz com que o falante tendencione
ao uso mais cerimonioso como afirma Silva & Barcia (2007), por seu
interlocutor não se tratar de um co-igual.
O
uso categórico do tu com concordância
dispõe-no em um enquadramento de formalismo religioso, proveniente de uma
tradição discursiva do gênero oral. Essa TD (discutida por KABATEK -2006) exige
a manutenção desta fórmula (tu com
concordância) que se constitui de um “freio” para o processo apontado por Lopes
(2007), pois o falante não produz aconstrução eleita como preferida (tu sem concordância) por uma boa parcela
da população (FARACO e MOURA - 2001).
O presente trabalho abre um campo de
futura observação em relação ao uso de “vós” e à variação entre “tu” e “você”
nas pregações. A hipótese seria a de que no momento de discurso ao povo, o
pregador poderia usar uma das variantes; diferente situação atestamos nas
orações em que o cristão se dirige a Deus, relação que exige maior formalidade.
http://www.filologia.org.br/iv_jnlflp/resumos/o_tratamento_cerimonioso_de_segunda_FLAVIO.pdf
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SILVA, Andreza da e BARCIA, Lucia Rosado - Vossa Mercê, você,
vós, ou tu? - A flutuação de formas em cartas cariocas dos
séculos XVIII e XIX – Ao Pé da Letra - Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
WEINREICH, Uriel, LABOV, Willian &
HERZOG, Marvin, (2006) Fundamento empíricos para uma teoria da
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Duarte. São Paulo: Parábola Editorial. A Sympisium (em 1966) editado por
LEHMANN, W. P. & MALKIEL, Y. Drirections
for Historical Linguistics. Austin – London: University of Texas Press,
1968. P. 95-195.
Links
de vídeos de orações:
1. http://www.youtube.com/watch?v=BC17vpvsZAU
(Proferido pelo Levita Moisés – LM 2009)
2. http://www.youtube.com/watch?v=movQviYeTYI&feature=related
(Igreja Evangélica Pentecostal - IEP – 2009)
3. http://www.youtube.com/watch?v=S73Tk4A-3Nw
(Ernandes Fernades – EF – 2009)
4. http://www.youtube.com/watch?v=zVwZd6lRSMI&feature=related
(Pastor Júlio – PJ
–
2009) Duração 9:20 seg.
5. http://www.youtube.com/watch?v=3Jn2bKWVvtY&feature=related
(Ato profético –
Igreja
Batista da Lagoinha – Pr. Márcio Valadão – PMV – 2009)
6. http://www.youtube.com/watch?v=FNbMj5Scx2Q
(Pr. André Valadão – PAV – 2009) 6:00 min
7. http://www.youtube.com/watch?v=8n_y1bO6QZk&feature=related
(Ana Paula Valadão – APV – 2009) 09:51 seg