PENSAMENTOS E FRASES

“A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe."

(Jean Piaget)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Tratamento cerimonioso em segunda pessoa no discurso religioso: um caso de Tradição Discursiva


O TRATAMENTO CERIMONIOSO DE SEGUNDA PESSOA EM DISCURSO RELIGIOSO: UM CASO DE TRADIÇÃO DISCURSIVA
Por Flavio Lima
RESUMO: Este artigo focaliza o uso da forma pronominal tu com concordância, nos contextos de formalismo e cerimonialismo do discurso religioso. Foi analisado um corpus de fala constituído de orações dos fiéis evangélicos durante cultos religiosos a fim de testar o comportamento da forma pronominal procurando verificar a hipótese de que, nesses contextos, haveria uma tendência à produção da forma culta (tu com concordância). Os resultados gerais apontam para o uso categórico dessas formas no corpus selecionado e revelam, também, que se trata de um caso de Tradição Diacursiva do gênero oral em questão (orações religiosas).

ABSTRACT: This article focuses on the use of the pronoun form you agree with, in the contexts of formalism and ceremonialism of religious discourse. We analyzed a speech corpus consisting of prayers of the faithful evangelicals during religious services in order to test the behavior of pronominal form trying to verify the hypothesis that, in these contexts, there was a tendency to produce cultured fashion (you agree with). The overall results point to the use of these categorical forms in the corpus selected and also show that this is a case of oral Discursive Tradition of the genre in question (religious prayers).

Introdução
O presente trabalho tem a finalidade de analisar as forma pronominal tu no discurso religioso. Percebeu-se que a forma, neste contexto, é usada com concordância verbal, contrariando a tendência apontada por estudos recentes de expressão de (tu) sem concordância e substituição desse pronome por você.  
Assim, pretende-se investigar a ocorrência dessas formas no discurso religioso, a fim de se analisar se, nesse contexto, o falante obedece à tendência atual (LOPES, 2007; SILVA e BARCIA, 2007), ou é influenciado pela atmosfera religiosa, de formalismo e cerimonialismo, tendendo a produzir estruturas com tu com concordância. Esse formalismo seria marcado em contexto em que os fiéis se direcionam a Deus – a segunda pessoa. Haveria nesse diálogo uma pressão hierárquica que leva o suplicante a usar uma estrutura mais formal.
O estudo será baseado em uma análise qualitativa e quantitativa de sermões e orações proferidas dentro dos templos evangélicos e obtidas na internet.
Tomamos como base a questão levantada por Lopes (2007), a qual declara que as formas de tratamento tu e vós ainda poderiam existir. O pronome “vós”, tratado em estudos anteriores, apesar de não ser usado, ainda poderá ser encontrado nos templos religiosos por ser tratar de um uso mais formal (arcaizante). Entretanto, para o presente estudo, limitar- nos-emos em estudar tal forma a partir de uma revisão teórica, uma vez que só haveria contexto para sua produção em sermões, nos quais o pregador se dirija ao povo, aos fiéis. O corpus estudado constitui-se em orações, conversas formais entre o fiel com Deus, situação em que só se pode evidenciar a concorrência entre a forma tu com concordância e a mesma sem concordância. 
Para a composição do corpus, foram selecionados sete vídeos de orações evangélicas,  – no endereço www.youtube.com.br, uma vez que desconhecemos a existência de um material desse tipo nas academias. Todos foram escutados a fim de que os dados fossem coletados.
Com os dados coletados passou-se a contagem, desenvolvendo-se a análise quantitativa.
Depois das análises, levou-se em consideração a necessidade de se tomar como pressuposto teórico a teoria da Tradição Discursiva proposta por Eugênio Coseriu in Kabatek (2006). Tal teoria apresenta uma explicação do porquê de determinada forma passar a ser usual em detrimento de outra em certo gênero discursivo oral ou escrito; é um ato linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação, mas relaciona também esse texto com outros textos de uma mesma tradição. Consideramos que a expressão de concordância no uso do tu é, na verdade, Tradição Discursiva do discurso religioso, em contexto de cerimonialismo no diálogo com a entidade superior, Deus.

1.      Revisão gramatical.
As diversas gramáticas normativas não divergem quanto ao uso dos pronomes “tu” e “vós” e como eles se apresentam, ou seja, como caracterizadores universais de segunda pessoa do discurso (com quem se fala). O quadro pronominal tradicional, no qual estão contempladas tais formas, ainda é sustentado pelos gramáticos como Bechara (1999), Cunha & Cintra (1999), Rocha Lima (1991); entre outros.
A gramática normativa prescreve que são duas as pessoas determinadas do discurso: primeira eu - a pessoa correspondente ao falante - e segunda tu - correspondente ao ouvinte - como também seus plurais “nós” e “vós”.

Veja, a seguir, o quadro adotado pela gramática, retirado de Cunha (1999):

Singular
Plural
1ª pessoa
EU
NÓS
2ª pessoa
TU
VÓS
3ª pessoa
ELE / ELA
ELES / ELAS

Azeredo (2000, p. 121) contempla, no seu quadro pronominal, a forma “você” como pertencente ao quadro de pronomes pessoais do caso reto: “O indivíduo a que o eu se dirige – segunda pessoa, do singular ou plural (tu/vós, você/vocês).”
Embora o quadro esteja completo, o “vós” tem desaparecido da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Como aponta os gramáticos. Cunha e Cintra (1985) comenta sobre a presença do pronome vós sendo usado em alguns discursos:

O pronome vós praticamente desapareceu da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Mas em discursos enfáticos alguns oradores ainda se servem da 2ª pessoa do plural para se dirigirem cerimoniosamente a um auditório qualificado. (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 277)

Mesquita (1995) aponta como raridade na linguagem coloquial do português do Brasil. Faraco & Moura (2001) também reconhecem que esse pronome é bastante raro e declaram:
O pronome vós, comum em discursos cerimoniosos e no texto religioso, é bastante raro na linguagem corrente do Brasil atual. Atualmente pode aparecer com sentido irônico:
Ex: Abandonai toda esperança vós que entrais nos supermercados da assistência médica. A compra de um plano de saúde exige tantos cuidados quanto adquirir um carro usado. (Veja) – (FARACO e MOURA, 2001, p. 288)

Em relação ao pronome “tu”, esses autores afirmam que o uso do tu sem concordância está ocorrendo em várias regiões do Brasil, mas são contundentes em declarar que, no Rio de Janeiro, é comum ocorrer o cruzamento coloquial entre o pronome de tratamento de segunda pessoa com a forma verbal de terceira pessoa quase categoricamente. Observe, a seguir, um exemplo desses autores e outro do corpus pesquisado:

Ex: “Tu não me enrola, não.” (Folha de São Paulo) - (FARACO e MOURA, 2001, p. 288)
Tu vai comer aonde?” (AF – 2009).
A gramática normativa sinaliza que constitui em erro esse tipo de construção, pois o verbo tem que concordar com o sujeito que lhe serve de base.
Mesquita (1996, p. 221) retoma as afirmações de Cunha e Cintra (1985), expostas na Nova Gramática do Português Contemporânea. Dizem:

“No português do Brasil, o uso de tu restringe-se ao extremo Sul do País e alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente delimitados. Em quase todo o território brasileiro, foi ele substituído por você como forma de intimidade. Você também se emprega, fora do campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou de superior para inferior.” – (CUNHA e CINTRA – 1985)
2.    Estudos recentes.
Alguns autores têm discutido a respeito das formas de tratamento, porém, daremos uma atenção especial ao estudo de Lopes (2007) in Vieira e Brandão (2007, p. 115), uma vez que ela apresenta os resultados de sua pesquisa sobre a variação em questão. Observe o quadro pronominal proposto pela autora:
Pessoa
Pronome Sujeito
Pronome Complemento direto
Possessivos
P 1
Eu
me
Meu / minha
P 2
Tu / você
Te, lhe, (se), você
Teu/tua/seu/sua / de você
P 3
Ele / ela
O, a, (se) / lhe / ele (a)
Seu / sua / dele (a)
P 4
Nós / a gente
Nós / a gente
Nosso (a) / da gente
P 5
Vocês
Vocês / lhe / se
Seu(s)/ sua(s)/ de vocês
P 6
Eles / elas
Os, as (se) / lhes / eles (as)
Seu(s) / sua(s) / deles(as)

Lopes (2007) propõe uma re-organização em um novo quadro pronominal, contudo, deixa bem claro que este quadro está longe de ter uma verdadeira coerência interna e, principalmente, dar conta da realidade concreta do português no Brasil.
Um dos pontos principais, como afirma a autora, é de que o pronome “vós”, tratado em estudos anteriores, apesar de não ser usado, ainda poderá ser encontrado nos templos religiosos por ser tratar de um uso mais formal (arcaizante). Este, tendo como base os escritos religiosos, é ouvido em sermões e orações proferidas por falantes de diversos segmentos educacionais. Esta hipótese também é sustentada por gramáticos como Cunha e Cintra (1995), re-afirmada por Mesquita (2001), entre outros.
Lopes (2007) conclui que se deve ensinar as variações como também os arcaizantes já que, ao se reter o ensino do “vós” e “tu”, poder-se-ia dificultar a leitura de grandes obras como a Carta de Caminha. A autora declara:

Defende-se a apresentação do que é normal, usual e frequente no português brasileiro, sem perder de vista o que está disponível na nossa literatura, na nossa língua, na nossa história. São os diferentes saberes envolvidos, “saberes lingüísticos na escola”: a norma vernácula, o saber descritivo/prescritivo e o saber do professor. Um saber não anula o outro. (friso meu).
Como se percebe, há muito ainda por descrever, explicar, entender e, parafraseando João Ubaldo, “vamos estudando, somos ignorantes, havemos de aprender. Nosso consolo é que muitas das coisas que nos afligem (ou que afligem a gente) devem afligir vocês também”. (LOPES, 2007, p. 116)


Além de Lopes (2007), outros autores se interessaram por estudar a variação entre o “tu” e “você”. Realizando estudos em Minas Gerais, Silva & Barcia (2002) perceberam que o uso de “você” foi mais abrangente no século XVIII. Porém, no século XIX a forma pronominal “tu” é a mais empregada. Declara Silva & Barcia (2002):

O quarto grupo - relação entre emissor-destinatário - evidencia que a forma tu suplanta o uso de você tanto nas relações pessoais simétricas de amizade (amigos, primos, etc.) quanto nas relações íntimas de família (avós, netos). Todavia, verifica-se que a forma você, uma variante em vias de gramaticalização, ocorre preferencialmente nas relações íntimas de família, marcadas, ainda, por uma relação assimétrica (superior-inferior), basicamente, entre avô e neto e entre pai e filho (.99). O caráter de uma certa reverência ou respeito advindo da forma original Vossa mercê ainda não se tinha perdido por completo na variante vulgar você. (SILVA e BARCIA, Ao Pé da Letra, p. 7)

Da mesma forma que, no caso estudado pelas autoras, no qual o falante usa o “tu” e o “você” por grau de intimidade (superior/inferior; formal/informal) (MOTA, 2008 in SILVA e BARCIA, 2002),  o religioso, também tende a usar o “tu” em uso mais formal, por Deus se tratar de um ser superior.
Outros linguistas e gramáticos defendem a ideia de que o pronome tu foi derribado pelo você na variedade brasileira do português. Esse fenômeno, segundo Duarte (1993), está relacionado com outras variações no sistema do português. Ela defende a hipótese de que, com o emprego do pronome você em lugar do pronome ‘tu’, deu-se a redução no quadro de desinências verbais. De um paradigma formado de seis pessoas distintas, passou-se a um paradigma de quatro formas: eu canto, você/ele canta, nós cantamos, vocês/eles cantam. Esse paradigma coexiste com outro de três formas, decorrente do uso da expressão a gente, em lugar do pronome nós estudado por Lopes (2007).
Essa redução pode ser observada no quadro a seguir proposto no livro viver e aprender- português - 3ª Série – cujos autores são Cloder Rivas Martos e Joana D’arc Gonçalves de Aguiar, (pág. 177). Embora seja um livro do primeiro segmento do Ensino fundamental, considera-se de grande relevância esta nova proposta, pois pode se constituir em uma mudança de postura em relação ao ensino das formas pronominais pouco usadas, o que contrariaria a visão se Lopes (2007) sobre esse assunto.

ACORDAR
Presente
Pretérito
Futuro
Eu acordo
Eu acordei
Eu acordarei
Tu acordas
Tu acordaste
Tu acordarás
Ele, ela acorda
Ele, ela acordou
Ele, ela acordará
Nós acordamos
Nós acordamos
Nós acordaremos
Eles, elas acordam
Eles, elas acordaram
Eles, elas acordarão

Como pode ser observado, a forma vós é retirada do quadro. O autor a menciona no capítulo de pronomes pessoais do caso reto como uma forma “atualmente pouco usada”. No capítulo referente a verbo, no qual está inserido o quadro acima, não há menção a tal forma e as atividades propostas obedecem ao paradigma utilizado no quadro. Ou seja, em nenhum momento, neste capítulo, o aluno entra em contato coma flexão verbal de segunda pessoa do plural. Essa situação vai de encontro à proposta de Lopes (2007) que discute a necessidade de que o vós seja mantido nos quadros gramaticais para a manutenção do conhecimento.
Na próxima seção, apresentaremos alguns conceitos da teoria que norteou esta pesquisa (Tradição Discursiva).
3.    Pressupostos teórico-metodológicos
Como dito na introdução, deseja-se justificar a preferência da expressão de tu com concordância como reflexo de tradições discursivas religiosas.
Segundo Kabatek (2006, p. 512):
Tradição Discursiva (TD) é a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.

Company Company (2002) discute o fato de um fenômeno poder ter sua aplicabilidade diferenciada a depender do gênero do discurso, ou seja, o gênero discursivo pode ser condicionante tanto da criação das inovações sintáticas quanto de sua difusão. Essa discussão nos interessa, uma vez que se entende que os gêneros orais religiosos, por serem produzidos em contexto de extrema cerimônia, podem ser condicionantes do uso da estrutura tu com concordância.
Na tentativa de relacionar a TD à mudança linguística, Kabatek (2006) aponta que as TDs podem “frear ou acelerar” mudanças linguísticas. Determinados tipos de textos, segundo ele, exigem a manutenção de certas fórmulas ou seleção de “variedades”. No caso da presente pesquisa, cabe a discussão sobre a possibilidade das TDs religiosas se constituírem em “freio” para o processo de mudança linguística apontada por Lopes (2007), uma vez que, no contexto religioso o tu  está sendo usado com concordância, opondo-se a tendência da variação tu sem concordância apontada por estudos recentes.
Na seção seguinte, passaremos a mostrar os resultados obtidos com a pesquisa nas orações retiradas na internet.


4.    A forma "tu" no discurso religioso.
Sobre as formas de segunda pessoa, Lopes (2007) declara (1) ser um equívoco “deixar de apresentar aos alunos o atual sistema em toda sua complexidade” como também “não mencionar a existência dos pronomes em desuso” ocasionando um dano ainda maior. (2) “que deve se tratar de um conhecimento passivo que precisa estar disponível, para que seja possível ler um texto de sincronias passadas (o cancioneiro medieval ou poesia trovadoresca dos primeiros tempos de nossa história, a Carta de Caminha, a poesia, os romances do amigo).” Nós vamos além disso, ampliando os exemplos citados, pois devemos considerar tal conhecimento necessário para a compreensão também dos textos bíblicos e do discurso religioso de um modo geral, ou seja, as formas “tu” e “vós” participam do cotidiano linguístico dos cristãos.
Baseando-se na afirmação de Silva & Barcia (2002), percebe-se que o falante escolhe os pronomes de acordo com o grau cerimonioso ou de intimidade. Ao se falar com um co-igual, é marcante a presença da variante não padrão (tu sem concordância), porém, ao se falar com Deus, através de orações, escolhe-se a forma padrão “tu com concordância”.
Observe os exemplos a seguir:
a)    “Senhor, tu que habitas no alto e sublime trono... ouve meu clamor” (AF – 2009).
b) “irmão, tu sabe (b’) que Deus pode te salvar  ... então, diga para ele: Senhor tu tens (b’’) todo o poder e podes me livrar!” (AF – 2009)
c) “Deus soberano e fiel, que tens todo o poder em tuas mãos.” (JM – 2009)
Nos exemplos apresentados percebe-se a presença marcante da variante padrão “tu” com concordância ao invés do uso da variante não-padrão (tu sem concordância). No exemplo “b” o falante profere na mesma sentença a variante não-padrão e a variante padrão. Observa-se em b’ o uso da variante não-padrão, no diálogo do falante com o público, ou seja, seus co-iguais; contudo, ele escolhe a padrão para ensinar como o indivíduo inicia uma oração (conversa) com Deus (b’’). A hipótese de Silva & Barcia (2007) aplica-se perfeitamente ao exemplo, pois declaram que o falante escolhe o pronome de acordo com o grau de intimidade; no caso citado, o seu interlocutor é Deus. Por ser Deus um ser considerado supremo, divino, santo, superior, escolhe-se usar a variante padrão.
No caso dos exemplos a e c, o falante está em pleno contato com seu interlocutor que é Deus e, por isso, tende a usar a variante padrão “tu” com a devida concordância. Entendemos que a forma não-padrão (expressão de tu sem concordância) evidencia o vernáculo do falante (b’), que, segundo Labov (1994), é a língua isenta de influências externas. Provavelmente, em seu dia-a-dia, esse falante produza tu sem concordância, mas no contexto com um ser superior (Deus) tenderá a usar o tu com concordância, por conta de uma Tradição nesse discurso, ou seja, envolvido no cerimonialismo, esse falante tende a manter a “fórmula” tu com concordância conforme aponta Kabatek (2007).
A expressão de tu com concordância, evidenciada em b’’, para nós, é fruto do enquadramento do falante na situação de formalismo religioso, no contexto em que ele se sente totalmente inferior à entidade com a qual fala. Isso quer dizer que o uso dessa variante é justificado pela tradição discursiva do gênero oral no qual foi produzida. Ele deixa de discursar seu sermão, no qual se dirigi a co-iguais, e passa a criar um contexto de oração, súplica; situação em que se estabelece a tradição discursiva do discurso religioso. 
A partir de agora, analisar-se-á o corpus estudado. 
Foram selecionados sete (7) vídeos de orações. Quando pesquisou-se as formas pronominais nas orações proferidas, percebeu-se que, em todos os vídeos pesquisados, há 100% do uso do pronome “tu” obedecendo à norma culta (com concordância), todos eles relativos a Deus, ou seja, uso categórico.

Os dados apresentados abaixo foram retirados desses vídeos.
1.    Trechos retirados de (LM – 2009)
a)        “nós nos curvamos diante de Ti, pois tu és Senhor, tu és Senhor e Rei.” (LM-2009)

b)        “Deus, o Senhor sabe da condição de cada um, cada coração que está aqui nessa hora Pai. Tu sabes, Senhor, da condição de cada vida que se encontra nesta hora. Tu sabes, Senhor, a condição de cada vida que se encontra aqui nesta noite, neste lugar.” (LM – 2009)

c)        “...mas Senhor, tu és um que pode curar, tu és um Deus que pode trazer vida, tu és um Deus que podes trazer a paz!” (LM – 2009)
d)       “Abra, Senhor, o nosso entendimento para entender a tua palavra, para entender a tua grandiosidade, para saber, Senhor, que tu não és aquele que está distante.” (LM – 2009)

e)        tu podes, Senhor sondar o meu coração agora!  (LM – 2009)

f)         “pois tu sabes Senhor que as vezes até mesmo um sorriso nos lábios pode estar escondendo  amargura, pode estar escondendo a tristeza.”

g)        “Mas Senhor  tu és Deus que podes mudar, tu és um Deus que podes trazer vida! Tu és um Deus que podes trazer alegria!”

2.    Trecho da oração de (IEP – 2009)
h)        “Óh, Deus, tu que habitas em um alto e sublime trono, olha para nós! Queremos te louvar, te exaltar nesta noite!”
i)          “Óh Deus! Vem enxugar nossas lágrimas... vem restaurar tua igreja. Tu podes curá! Tu tens tudo o poder!”

j)          “Jesus amado! Manda seus anjos aqui para nos proteger! Envia uma legião de anjos para nos proteger papai! Tu tens a espada de fogo! Tu sabes de todas as coisas!”

k)        “Estamos celebrando este culto a ti papai! Vem com teu poder e glória... pois tu mandas brasa viva do altar!”

l)          “Jesus amado, vem nos ajudar... pisa na cabeça do diabo! Tu tens todo o poder papai!”
3.    Trechos da oração de (EF – 2009)
m)      “Porque sabemos Deus, que tu és o criador que criou os céus e a terra!” (EF – 2009)

n)        tu, Senhor, que visitas o pobre, o aflito, socorre-nos nesta noite!” (EF – 2009)

4.    Trechos da oração de (PJ – 2009)
o)        “salva a minha casa Senhor, salva o meu lar. Pois tu tens poder, tu podes  tudo!”

p)        “Oh Soberano Deus, tu és supremo, tu és tremendo, exaltado entre as nações!”

5.    Trechos da oração de (PMV – 2009)
q)        “Eu quero agora rasgar o meu coração. Tu sabes Deus aonde eu preciso.”

6.    Trechos da oração de (PAV – 2000)
r)         “Senhor Jesus, O Senhor é forte! Tu és Deus de milagres! Tu és Deus que restaura a nossa vida.”

7.    Trecho da oração de (APV – 2009)
s)         “Queremos caminhar por onde o Senhor caminha, por onde o Senhor caminhou, por onde o Senhor caminha hoje. Porque  tu estás conosco!”
t)          “nós queremos deixar tudo no teu altar Senhor, para que tu faças o que quiseres com a nossa vida!”
u)        “Para que  tu faças como quiseres com a nossa vida!”
v)        “do teu jeito, da tua maneira, quando quiseres se quiseres, Senhor.”
w)      “para mim o viver é Cristo.. óh és tu Senhor!”

x)        Percebeu-se que, em todos os dados analisados, o falante usou o “tu” e fez devidamente a concordância, ou seja, o uso é categórico. É importante destacar que até mesmo nos trechos em que o “tu” é elíptico, o verbo foi flexionado na segunda pessoa, como vemos em “Mas Senhor  tu és Deus que podes mudar, tu és um Deus que podes trazer vida! Tu és um Deus que podes trazer alegria!”. Entendemos que os falantes usam essa forma com naturalidade, e ressaltamos que essa é uma prática contrária à tendência atual, como apontam estudos gramaticais (FARACO e MOURA - 2001).
 A forma tu com concordância é amplamente usada pelos falantes, marcados pela cerimoniosidade e grau de intimidade com o interlocutor (Deus), não havendo, no corpus, a variante não-padrão (tu sem concordância) por motivo de o interlocutor não ser um co-igual e por se tratar de uma Tradição Discursiva.
A Tradição Discursiva desse gênero oral explica tal fenômeno. Os falantes reproduzem formas padrão, muitas vezes diferentes das representativas de seu vernáculo, pois estão inseridos numa comunidade de fala cuja referência é o texto bíblico, formal e tradicional.

5.    Considerações finais
Conclui-se, então, que mediante os dados apresentados, a forma tu com concordância é usada pelos falantes, em grande proporção, por estar relacionada a um ato cerimonioso e íntimo com seu interlocutor, neste caso, Deus.
A Tradição Discursiva no formalismo religioso faz com que o falante tendencione ao uso mais cerimonioso como afirma Silva & Barcia (2007), por seu interlocutor não se tratar de um co-igual.
O uso categórico do tu com concordância dispõe-no em um enquadramento de formalismo religioso, proveniente de uma tradição discursiva do gênero oral. Essa TD (discutida por KABATEK -2006) exige a manutenção desta fórmula (tu com concordância) que se constitui de um “freio” para o processo apontado por Lopes (2007), pois o falante não produz aconstrução eleita como preferida (tu sem concordância) por uma boa parcela da população (FARACO e MOURA - 2001).
O presente trabalho abre um campo de futura observação em relação ao uso de “vós” e à variação entre “tu” e “você” nas pregações. A hipótese seria a de que no momento de discurso ao povo, o pregador poderia usar uma das variantes; diferente situação atestamos nas orações em que o cristão se dirige a Deus, relação que exige maior formalidade. 


http://www.filologia.org.br/iv_jnlflp/resumos/o_tratamento_cerimonioso_de_segunda_FLAVIO.pdf


6.    Bibliografia:
AZEREDO, José Carlos de, 2000 – Fundamentos de gramática do português – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

BECHARA, Evanildo, 1928 – Moderna Gramática portuguesa – 37. Ed. ver. e ampl. – Rio de Janeiro : Lucerna, 1999.

COMPANY COMPANY, Cancepción. “Gramaticalización y dialetologia comparada. Uma isoglosa sintáctico-semántica del español”. DICENDA. Guardernos de Filologia Hipánica. 20:39-71,2002.

CUNHA, Celso e CINTRA, Luís F. Lindley – Nova Gramática do Português Contemporâneo – 2ª Ed. – 36ª impressão – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Do pronome nulo ao pronome pleno. In: ROBERTS, Ian; KATO, Mary (Org.). Português brasileiro: uma viagem diacrônica homenagem a Fernando Tarallo Campinas: Ed. da UNICAMP, 1993. p. 107-128. (Repertórios).

FARACO & MOURA (2001) , Gramática – 12ª edição e 3ª impressão, Editora Ática, São Paulo – SP.

KABATEK, Johannes: Tradições Discursivas e mudanças linguísticas, In; Lobo, Tânia, Ilza Ribeiro, Zenaide Carneiro & Norma Almeida (eds.): Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises, Salvador: EDUFBA, 2006.

LOPES, Célia Regina dos Santos – Pronomes Pessoais. In: VIEIRA, Silvia Rodrigues Vieira & BRANDÃO, Sílvia – Ensino do português – Rio de janeiro: Editora Contexto, 2007.

LOPES, Célia Regina dos Santos; MACHADO, Ana Carolina Morito. Tradição e inovação: indícios do sincretismo entre segunda e terceira pessoas nas cartas das avós. In: LOPES, Célia Regina dos Santos (Org.). Norma brasileira em construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Letras Vernáculas/FAPERJ, 2005. p. 45-66.

__________. Pronomes pessoais – In: VIEIRA, Sílvia Rodrigues e BRANDÃO, Sílvia Figueiredo (Org.), 2007 – Ensino de gramática: descrição e uso – Editora Contexto, São Paulo.

MARTOS, Clode Rivas e AGUIAR, Joana D’arc Gonçalves de – Viver e aprender português – 3ª série – Ed. Saraiva, Rio de Janeiro.

MESQUITA, Roberto Melo – Gramática da Língua Portuguesa – 5ª edição – São Paulo: Saraiva, 1996.

SILVA, Andreza da e BARCIA, Lucia Rosado - Vossa Mercê, você, vós, ou tu? - A flutuação de formas em cartas cariocas dos séculos XVIII e XIX – Ao Pé da Letra - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Links de vídeos de orações:
1.      http://www.youtube.com/watch?v=BC17vpvsZAU (Proferido pelo Levita Moisés – LM 2009)
2.      http://www.youtube.com/watch?v=movQviYeTYI&feature=related (Igreja Evangélica Pentecostal - IEP – 2009)
3.      http://www.youtube.com/watch?v=S73Tk4A-3Nw (Ernandes Fernades – EF – 2009)
– 2009) Duração 9:20 seg.
Igreja Batista da Lagoinha – Pr. Márcio Valadão – PMV – 2009)
6.      http://www.youtube.com/watch?v=FNbMj5Scx2Q (Pr. André Valadão – PAV – 2009) 6:00 min
7.      http://www.youtube.com/watch?v=8n_y1bO6QZk&feature=related (Ana Paula Valadão – APV – 2009) 09:51 seg