PENSAMENTOS E FRASES

“A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe."

(Jean Piaget)

sábado, 13 de outubro de 2012

LUCÍOLA - José de Alencar


Conta a história romântica de Lucíola e Paulo. Lucíola é uma cortesã de luxo do RJ em 1855. E Paulo um rapaz do interior que veio para o Rio para conhecer a Corte.
Na primeira vez que Paulo viu Lúcia, julgou ela como meiga e angélica, mesmo seu amigo Couto contando barbaridades sobre ela e revelando a sua verdadeira profissão, Paulo manteve essa imagem em seu coração.
Descobrindo sua casa, Paulo foi visitá-la, e sendo as circunstâncias favoráveis, ela entregou-se a ele como no mais belo ato. Depois disto, Lúcia passou a ser vulgar e mesquinha, desprezando o amor de Paulo, bem como havia dito Couto a respeito dos modos da moça.
Paulo então viu Lúcia com outros homens, como Jacinto, e sentiu ciúmes, mas Lúcia justificou alegando ser ele apenas um negociante. 
Em uma festa a que tanto Paulo quanto Lúcia estavam presentes, todos os convidados beberam e jogaram a vontade, tanto os homens quanto as mulheres. Nas paredes havia quadros de mulheres nuas, e como era Lúcia uma prostituta, a pedido e pagamento dos cavalheiros, ela ficou nua diante dos presentes. 
Para Paulo aquela não era a imagem que ele havia visto na casa e na cama de Lúcia, esta era repugnante e vulgar, aquela bela e fantástica, não era Lúcia que ali estava, aquela jovem meiga que conhecera, e sim Lucíola, a prostituta mais cobiçada do Rio de Janeiro.Então Paulo retirou-se, alegando que já havia visto paisagens melhores. 
Lúcia arrependeu-se do que fez e eles se reconciliaram. Paulo a amava desesperadamente de forma bela e pura, Lúcia em seus conturbados sentimentos, decidiu então dedicar-se inteiramente a esse amor para que sua alma fosse purificada por ele.
Então vendeu sua luxuosa casa e foi morar em uma menor e mais modesta. E contou a Paulo sua história: Seu nome verdadeiro era Maria da Glória e, quando em 1850 houve um surto de febre amarela, toda sua família caiu doente, do pai à irmãzinha. 

Para poder pagar os medicamentos necessários para salvá-los, Lúcia se deixou levar por Couto, quem a partir disso ela passou a desprezar profundamente. Nessa época ela tinha 14 anos, e seu pai, ao descobrir, a expulsou de casa. Ela fingiu então sua própria morte quando sua amiga Lúcia morreu, e assumiu este nome.
Agora, com o dinheiro que conseguia, pagava os estudos de Ana, sua irmã mais nova. Paulo ficou muito comovido com a historia de Lúcia. Ele sempre a visitava e numa noite de amor ela engravidou, mas adoeceu. Lúcia acreditava que a doença era devido ao fato de seu corpo não ser puro. 
Confessou seu amor a Paulo e que pertencia a ele, queria que Paulo casasse com Ana, que tinha vindo morar com eles. Paulo recusou-se assim como Lúcia também recusou o aborto. E por isso ela morreu.
Após 5 anos, Ana passou a ser como uma filha para Paulo, que a amparava. E 6 anos depois da morte de Lúcia, Ana casou-se com um homem de bem e Paulo continuou triste com a morte do único amor da sua vida.
Lucíola é um romance urbano, em que Alencar transforma a cortesã em heroína, esta purifica sua alma com o amor de Paulo. Ela não se permite amar, por seu corpo ser sujo e vergonhoso, e ao fim da vida, quando admite seu amor, declara-se pertencente a Paulo. É a submissão do amor romântico, onde a castidade valorizada.
Percebe-se também uma crítica social e moral ao preconceito. O romance causou comentários na sociedade. Paulo se viu dividido entre o amor e o preconceito. A atração física superou essa barreira, mas até o final ela se sentia indigna do amor de Paulo e do sentimento de igualdade que deveria existir entre os amantes. 

Análise

Lucíola é o quinto romance de Alencar e o primeiro da trilogia que ele denominou de "perfis de mulheres" (LucíolaDiva e Senhora). Situa-se entre seus romances urbanos que representam um levantamento da nossa vida burguesa do século passado. A obra, publicada em 1862, é um romance de amor bem ao sabor do Romantismo, muito embora uma ou outra manifestação do estilo Realista aí se faça presente. Trata-se de um romance de "primeira pessoa", ou seja, o narrador da história é um personagem importante da mesma, Paulo Silva. E ele a narra em cartas dirigidas a uma senhora, G. M. (pseudônimo de Alencar), que as publica em livro com o título de Lucíola. Fixam o  Rio de Janeiro da época, com a sua fisionomia burguesa e tradicional, com uma sociedade endinheirada que freqüentava o Teatro Lírico, passeava à tarde na Rua do Ouvidor e à noite no Passeio Público, morava no Flamengo, em Botafogo ou Santa Teresa e era protagonista de dramas de amor que iam do simples namoro à paixão desvairada.

Em todos os romance urbanos, Alencar aborda o amor como tema central. Ou, para ser mais exato, "aborda a situação social e familiar da mulher, em face do casamento e do amor". Mas o amor como o entendia a mentalidade romântica da época, um amor sublimado, idealizado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos e até de crimes, mas redimindo-se pela própria força acrisoladora de sua intensidade e de sua paixão.

Subjetivismo - O mundo do romântico gira em torno de seu "eu": do que ele sente, do que ele pensa, do que ele quer. Por isso o poeta e o personagem na ficção romântica estão em contínua desarmonia com os valores e imposições da sociedade e/ou da família. 

Em Lucíola encontram-se pelo menos duas grande manifestações desse subjetivismo romântico.

A primeira grande manifestação de subjetivismo está na própria estrutura narrativa do romance. Trata-se de um romance de "primeira pessoa", em que a história é narrada do ponto de vista de uma só pessoa. No caso, Paulo. Tudo gira em torno do que ele viu, pensou, sentiu junto a Lúcia. Tudo, portanto, muito individual. Já no capítulo I, Paulo esclarece que escreveu essas páginas para se justificar perante uma senhora que estranhou "a minha (dele)excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagância." Para isso , "escrevi as páginas que lhe envio, as quais a senhora dará um título e o destino que merecerem. É um "perfil de mulher" apenas esboçado."

A segunda considerável manifestação de subjetivismo está na oposição indivíduo x sociedade. No romance, Paulo e Lúcia ora se insurgem contra as convenções sociais: "Que me importa o que pensam a meu respeito?", ora satisfazem essas mesmas convenções, embora sempre reafirmando o próprio "eu" e fazendo a sua personalidade. 
- "... Há certas vidas que não se pertencem, mas à sociedade onde existem. Tu  és um celebridade pela beleza. O público, em troca do favor e admiração e que cerca os sue ídolos, pede-lhes conta de todas as sua ações. Quer saber por que agora andas tão retirada.
- "Ah! esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro de praça que não pode recusar quem chega..." 

Exaltação do amor - Em Lucíola, a temática central está exatamente na exaltação do amor como força purificadora, capaz de transformar uma prostituta numa amante sincera e fiel.

"- o amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há' mulheres que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e envelhecer, remoça como natureza quando volta a primavera."
"Tive força para sacrificar-lhes outrora o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que não teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora., disse Lúcia após sentir a afeição de Paulo."  

E o romance termina com esta patética exaltação do amor, balbuciada por uma prostituta regenerada por esse mesmo amor, momentos antes de sua morte: "Eu te amei desde o momento em que te vi! Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade."

Amor e morte - O romance é impregnado da ideia de morte pois Lúcia está continuamente a se queixar de uma doença misteriosa que Paulo não compreende nem aceita, supondo-se tratar-se de refinada desculpa para não se entregar a ele sexualmente. Lúcia não acredita nem admite que uma mulher como ela possa usufruir das alegrias e gozos do amor conjugal, dando ao esposo "o mesmo corpo que tantos outros tiveram". Seria uma profanação do verdadeiro amor. "O amor!... o amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro amor d'alma." 

Diante, portanto, da impossibilidade de realização de um amor puro, só resta a Lúcia, como personagem de um romance genuinamente romântico, uma saída: a morte. Nem mesmo um filho ela merece, pois seria o fruto de um amor vilipendiado. "Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da minha culpa! Mas sinto que ele não poderia viver no meu seio!" E, numa atitude típica de heroína romântica, Lúcia anseia morrer nos braços do homem amado: "Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços... Que morte mais doce podia eu desejar!"  "... desejava que fosse possível morrermos assim um no outro... uma só vida extinguindo-se num só corpo!". E assim se fez. Morreu ao lado do ser amado, dizendo-lhe: "vou te amar enfim por toda a eternidade. (...) Recebe-me... Paulo!"

Sentimentalismo melancólico - Em Lucíola um mínimo contratempo é o suficiente para lançar Lúcia ou Paulo na mais profunda tristeza. Numerosas passagens do romance colocam o leitor diante de quadros profundamente melancólicos. Como esta:

"Foi terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos, todos caíram doentes: só havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite e não amanheceu. Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria; algum dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O médico, que nos fazia a esmola de tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para cúmulo de desespero, minha tia uma manhã não se pôde erguer da cama; estava também com a febre. Fiquei só! Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enlouqueci."

E esta outra, onde Lúcia se fez passar por uma amiga morta para aliviar o sofrimento dos pais: "Lúcia morreu tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nosso nomes., Meu pai leu no jornal o óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa sepultura onde ele ia rezar por mim, e eu pela única amiga que tive neste mundo. Morri pois para o mundo e para minha família. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha prostituída."

Muitas das atitudes tomadas por Paulo ou Lúcia são próprias de pessoas que se deixam guiar pelo sentimento. Esta, por exemplo, esquisita e inexplicável de Lúcia "- Iremos juntos!... murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo."

Enfim, o romance todo, do início ao fim, está impregnado de uma atmosfera melancólico-sentimental.

Ilogismo - Os paradoxos, o comportamento ora excêntrico ora dúbio de Lúcia, ora virtuoso, ora pecaminoso que vai lançando Paulo numa dúvida angustiante: a própria duplicidade comportamental de Paulo, generoso e mesquinho, compreensivo e intransigente, correto e pilantra; tudo isso dá à intriga do romance um atrativo todo especial que, por sua vez, ora atrai ora aborrece o leitor. 

Há ainda outras manifestações de Romantismo no romance, tais como, imaginação e fantasia, culto da natureza, senso do mistério, exagero. Mas são de  importância secundária.

Lirismo - Há um lirismo bem bucólico nesta passagem de Lucíola"Sentamo-nos sobre a relva coberta d flores e à borda de um pequeno tanque natural, cujas águas límpidas espelhavam a doce serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso seu crochê e o novelo de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto ela trabalhava, eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me pela relva para beijar-lhe a ponta da botina que aparecia sob a orla do vestido."

E nesta outra há graça, ternura, sentimento: "Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento íntimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas roseando a branca escumilha."

Gosto pela descrição - Em Lucíola, de quando em quando aparece a natureza como a aliviar o leitor das tensões dos dramas humanos. 

Quanto à descrição dos personagens, Alencar parece se preocupar antes com o aspecto externo para depois chegar ao temperamento.  Antes mesmo de o leitor saber quem era ela, já Alencar lhe mostrou o retrato de Lúcia no capítulo II: "Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição." Na passagem seguinte Alencar como que nos conduz do exterior ao interior de Lúcia: "O rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas. A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase íntima, e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir pensamentos calmos, senão puros." 

No que concerne ao vestuário feminino é inegável a influência que Balzac exerceu em Alencar:"Lúcia fitou-se por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver suas belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe pelo seio cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas de trigo, cingia-lhe a fronte e caía sobre os ombros com a vasta madeixa de cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que brincavam."

Comparações - As comparações de Alencar, geralmente, referem-se aos personagens, ora em seus detalhes físicos, ora em seus estados de alma, ora em seus atributos morais. O segundo termo da comparação é colhido, na esmagadora maioria das vezes, de elementos da natureza: reino vegetal, animal ou mineral. Uma confirmação do que se disse está neste pequeno trecho: "Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa."

Desarmonias - Em Lucíola, a luxúria do velho Couto, e mais tarde a prática do vício, torcem a personalidade de Lúcia. A forma refinada desse sentimento da discordância é certa preocupação com o desvio do equilíbrio fisiológico ou psíquico. Relembre-se a depravação com que Lúcia se estimula e castiga ao mesmo tempo, e cujo momento culminante é a orgia promovida por Sá - orgia espetacular, com tapetes de pelúcia escarlate, quadros vivos obscenos, flores e meia luz, ultrapassando o realismo qualquer outra cena em nossa literatura séria.

Dentre muitos exemplos que se poderiam dar de "desarmonia" de situações, está o contraste entre Maria da Glória e Lúcia: aquela, pobre, simples, escondida; esta, rica, caprichosa, pública. Mas isso já é um conflito entre o passado e o presente.. Porém, os contrastes mais importantes na técnica narrativa do livro são aqueles relacionados com pessoas e sentimentos. De Paulo e Lúcia, naturalmente.

A mesma Lúcia que compôs recatadamente o roupão ante os olhos ávidos e voluptosos de Paulo que vislumbravam o simples contorno de um seio foi capaz de desfilar nua na ceia em casa do Sá. Ela é assim: contraditória. Ama e odeia. Atira-se ao vício e tende para a virtude, segundo suas próprias palavras: "Eis a minha vida... deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da depravação; contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima, sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Ficaram gravados no meu coração certos germes de virtudes..."

Também Paulo apresenta um comportamento paradoxal. Ora ele deseja violentamente Lúcia ora promete respeitá-la. Ofende-a e pede-lhe perdão; dá-lhe liberdade e a quer só para si; despreza-a e sente dela pungente ciúme; vê nela uma prostituta refinada e uma menina de quinze anos, pura e cândida. Também Paulo é contraditório: vil e magnânimo, como todo bípede implume e social chamado homem.

Técnica narrativa Lucíola é um romance de primeira pessoa, ou seja, quem narra a história não é Alencar diretamente. Ele o faz por meio de um personagem que viveu os episódios. No caso, esse personagem narrador é Paulo, que em cartas dirigidas a uma senhora (por quem o autor se faz passar) conta uma história de amor acontecida há seis anos entre ele e Lúcia. A senhora reuniu as cartas e delas fez o livro. "Eis o destino que lhes dou; quanto ao título, não me foi difícil achar. O nome da moça, cujo perfil o senhor me desenhou com tanto esmero, lembrou-me o nome de um inseto. "Lucíola" é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d'alma?" 

No capítulo I, o narrador explica a razão das cartas: "A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagâncias".

Na estrutura narrativa de Lucíola, portanto, pode-se observar o seguinte: 

1. há um autor real, José de Alencar; 

2. um autor fictício, a senhora G. M., destinatária das cartas de Paulo.

3. Um narrador, Paulo, com a incumbência e o privilégio de ordenar os fatos, comentá-los e tirar-lhes conclusões. 

À medida que transmite os fatos, vai fornecendo ao leitor elementos para a análise de Lúcia e dele mesmo. No romance os fatos são apresentados sob dois pontos de vista, dois ângulos diferentes: o de Paulo/personagem que transmite ao leitor as sensações vividas com Lúcia e o de Paulo/narrador que, por vezes, interrompe a narrativa fazendo reflexões ou dirigindo-se à destinatária de suas cartas.
O enredo abrange um período de aproximadamente seis meses. Foi o que durou o namoro do par romântico. Às vezes, o autor avança a narrativa com soluções bem simples: "Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão agitada, durava cerca de um mês." Em outras, retarda-a: dedicou três capítulos para a ceia em casa de Sá (capítulos VI, VII e VIII).

Ação - Gira em torno de uma história entre Paulo e Lúcia, com todos os ingredientes de um romance romântico: heróis e vilões, heroínas incompreendidas, virgens pálidas e meigas e cortesãs depravadas, a morte como única saída para um amor verdadeiro porém impossível, etc. 

Em Lucíola, o núcleo central da narrativa se concentra em Paulo e Lúcia, ora como duas individualidades com passado e presente próprios, ora como o "par romântico". E se concentra com tal intensidade, (afinal o narrador é exatamente Paulo - o herói, o mocinho - que ama a Lúcia - a heroína) que os episódios envolvendo os demais personagens ficam totalmente ofuscados.


Tempo -1855 - "A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855". Numa leitura atenta, o leitor percebe no livro o Rio de Janeiro da época de D. Pedro II, com seus salões, sua burguesia, suas vitrinas chiques na Rua do Ouvidor com mercadorias elegantes vindas de Paris ou Londres, seus tílburis, seu vestuário, etc.

Como tempo narrativo, ele é eminentemente "cronológico". Ou seja, em Lucíola os acontecimentos se sucedem numa ordem quase normal, com  uma seqüência natural de horas, dias, meses, anos. Só há um momento em que o fluxo narrativo retroage: quando Lúcia narra a Paulo seu passado. (Cap. XVIII e XIX). E em dois momentos ele avança: o capítulo I e o finalzinho do último revelam o estado de alma de Paulo seis anos após a morte de sua querida Lúcia: "Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas. (...) Hás seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente." 

Lugar - O cenário onde se desenrola a ação é o Rio de Janeiro. Há referências de seus bairros (Santa Teresa), ruas (das Mangueiras), população, festas (a da Glória), teatros, lojas elegantes, etc. 

É curiosa a relação entre os locais e o comportamento amoroso-sexual de Paulo e Lúcia, agindo aqueles no sentido de aproximação ou afastamento, de maior ou menor realização do casal. O quarto de Lúcia é um local de luxúria: "... e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de repente uma alcova elegante e primorosamente ornada." Das várias vezes que eles se uniram sexualmente neste luxuoso aposento, nenhuma, parece, satisfez de fato o casal. A primeira delas terminou assim: "Ao delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo então este corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos crispadas, tive dó."

O segundo encontro já foi totalmente diferente, em local e desfecho. Foi nos jardins da casa do Dr. Sá, onde Lúcia desfilara nua perante os convidados. O cenário é bem ao gosto do romantismo: a natureza. O leito é bucólico: "Fomos através das árvores até um berço de relva coberto por espesso dossel de jasmineiros em flor. Lúcia está vibrando: "- Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me visse! Seja agora a primeira vez!... Os beijos que lhe guardei, ninguém os teve nunca! Esse , acredite, são puros!" E o clímax foi aquele que só um par enamorado consegue haurir do sexo: "Não fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me possuiu todo, e tanto, que não me resta daquela noite mais do que uma longa sensação de imenso deleite, na qual me sentia afogar num mar de volúpia."

Quando Lúcia passou a morar numa casa pequena e pobre, em Santa Teresa, em companhia de sua irmã Ana, menina inocente, não mais houve união carnal entre eles. É que os dois já estavam unidos por um amor espiritual. Uma afeição muito pura unia aquelas duas almas. E tanto a simplicidade do local que "lembra o espaço feliz de sua infância em São Domingos" quanto a inocência da menina não comportava mais a depravação do sexo. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a fronte."

Personagens - Em Lucíola uma personagem apresenta grande complexidade psicológica, a par do idealismo romântico com que foi concebida:

Lúcia - Sua principal característica é a contradição. Como cortesã era a mais depravada. Basta que se lembre da orgia romana em casa de Sá. No entanto, a prostituição era-lhe um tormento constante, já que não se entregava totalmente a ela. E os atos libidinosos constituíam para ela verdadeira autopunição aliada à angustiante sentimento de culpa. Coexistem nela duas pessoas: Maria da Glória, a menina inocente e simples, e Lúcia, a cortesã sedutora e caprichosa. No livro, sobressai a Lúcia, Lúcifer, onde aparece 348 vezes contra 10 vezes como Maria da Glória, anjo. Tal disparidade realça o motivo do romance: à proporção que Lúcia vai amando e sendo amada por Paulo, ela vai assumindo a Maria da Glória, sua verdadeira personalidade. E reencontra assim, através dele, a dignidade e inocência perdidas. Pode-se expressar essa duplicidade da seguinte maneira:
Lúcia, mulher, depravação, luxúria, sentimento de culpa, prostituição, caprichosa, excêntrica, rejeita o amor, demônio. 

Maria da Graça, menina, pureza, ingenuidade, dignidade, inocência, simples,  meiga, tende para o amor, anjo. Perdida a virgindade física, Lúcia, por meio da compreensão e amor de Paulo, tende para a virgindade do espírito. "Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do coração!" Para isso renuncia a qualquer amor sensual. Mesmo ao de Paulo, de quem fora amante e a quem passou a negar um simples beijo. Depois que ela o conheceu, não se entregou a nenhum outro homem. É por isso que não cria no amor de Margarida, de A Dama das Camélias, porque ela não negou ao seu amado Armando o corpo que tantos já haviam comprado. 

E Lúcia recupera aos 19 anos a Maria da Glória que perdera aos 14. "Nada perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo letargo. (...) Ninguém diria que essa moça vivera algum tempo numa sociedade livre." 
Mas essa transformação completa custou-lhe penosos sacrifícios e sobretudo muita incompreensão inicial por parte de Paulo. "Incompreensível mulher! (...) Compreendo hoje as rápidas transições que se operavam nessa mulher; mas naquela ocasião, como podia adivinhar a causa ignota que transfigurava de repente a cortesã depravada na menina ingênua, ou na amante apaixonada!"

Seus traços físicos: cabelos e olhos pretos, a pele pálida. Sua expressão, contudo, lembra ao leitor sua dualidade de caráter: o olhar ora é "eloqüente, raio voluptuoso", ora é límpido, raio de luz de sua alma". É bem o ideal de beleza romântica, "com sua virgindade de alma tão pura e tão absoluta, que a não tisnaram os pecados do corpo. Por isso, mesmo nas horas em que mais lhe esplende a glória de cortesã, o romancista a veste simbolicamente de branco." 

Se algum leitor não entender bem a complexidade da personagem Lúcia, como o fez Paulo no início do romance, não é de se estranhar, pois afinal ela mesma se auto-definiu: "É difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa. Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? Não repare nestas esquisitices!"

Paulo - É um provinciano de Pernambuco, 25 anos, que veio tentar se estabelecer no Rio de Janeiro. O romance não esclarece se ele é ou não formado. Sugere apenas. É o narrador da história e como tal faz desviar a atenção do leitor para Lúcia e outros aspectos, não revelando certas informações suas. Os detalhes físico, por exemplo. Coisa, aliás, rara em José de Alencar, tratando-se de personagem central. 

Traçando o perfil de Lúcia, ele acaba por revelar também os eu: espírito observador e sensível, foi o único a compreender o estranho caráter de Lúcia. Seu temperamento é reservado sem ser tímido:  "... é hábito meu, desde que entrei no mundo, não admitir os estranhos à intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha alma entre amigos". E como ele não possui reais amigos no Rio, nuances de sua personalidade conhecem-se por deduções . 

Suas reações psicológicas são expressas em suas reflexões: "Que miserável animalidade havia em mim naquela noite! Quando essa pobre mulher atingia o sublime do heroísmo e da abnegação, eu descia até a estupidez e à brutalidade!" Ou nessa: "Não conheço mais estúpido animal do que seja o bípede implume e social, que chamam homem civilizado." 

A sua caminhada em direção ao amor pela heroína foi lenta. No início, o que o impelia para ela era atração sexual. Paulo, então, não a entende e transmite ao leitor suas incertezas e desconfianças. "Se eu amasse essa mulher... mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa moça uma idéia talvez falsa... " Tais desconfianças, por vezes, eram-lhe inoculadas pela sociedade através de alguns representantes - Dr. Sá, Sr. Couto, Cunha. "Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne." E chega mesmo a ser violento e sádico com ela. Isto se deduz de várias passagens, como: "Esta noite a senhora não se pertence: é um objeto, um bem do homem que a vestiu, que a enfeitou e cobriu de jóias, para mostrar ao público a sua riqueza e generosidade."Outras vezes, sentiu foi dó: "Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto me enterneceu; chorei com ela." Houve um período em que a afeição de ambos se arrefeceu. Paulo já a admira e dedica-lhe grande respeito e amizade: "Entramos então numa nova fase de nossa mútua existência, fase original e curiosa que me faria rir quinze dias antes. Com efeito, quem poderia julgar possível uma amizade fraternal e pura entre duas criaturas que meses antes trocavam as mais ardentes expansões da sensualidade?" Para no final devotar-lhe sincero amor a ponto de vibrar com um possível filho de ambos: " -Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria?"

É um ingênuo personagem romântico. Apesar de se declarar pobre e até se vexar por isso, vive byronicamente, de sonhos, de amor. 

Os demais personagens são secundários face aos dois protagonistas.

Dr. Sá e Cunha - Amigos de Paulo, sendo aquele desde a infância. Encarnam a moral burguesa e suas máscaras: austera com os outros, benigna consigo. Não possuem personalidade bem delineada no livro. Ambos vêem em Lúcia apenas a prostituta.

Couto e Rochina - O primeiro é um velho dado a jovem galante. Encarna a obsessão sexual e a velhice. Representa a sociedade que explora e corrompe. Foi quem aproveitou a necessidade e inocência de Lúcia. O segundo é um jovem de 17 anos, tez amarrotada, profundas olheiras, velho prematuro. Libertino precoce. Eles aparecem assim no romance: "O contraste do vício que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso, esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem de menino; essa antítese vivia devia oferece ao espectador cenas grotescas."

Laura e Nina - São meretrizes, como Lúcia, mas sem sua duplicidade de caráter. Não são capazes de "descer tão baixo" porém, não possuem a "nobreza e altivez" da protagonista.

Jesuína e Jacinto - Aquela, é mulher de 50 anos, seca e já encarquilhada. Foi quem recolheu Lúcia quando seu pai a expulsou de casa e a iniciou na prostituição. Este, é um homem de 45 anos, e "vive da prostituição das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos". Por seu intermédio Lúcia vendia as joias ricas que ganhava e enviava o dinheiro à família pobre. É quem mantém a ligação misteriosa no livro, entre Lúcia e Ana. Enfim, é quem cuida dos negócios dela.

Ana - É a irmã de Lúcia, que a fez educar num colégio até os doze anos como se fosse sua filha. "Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longos e de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas." Lúcia tenta casá-la com Paulo para ser uma espécie de perpetuação e concretização de seu amor por ele: "Ana te darias os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo?"

Problemática apresentada - Paulo quer Lúcia, mas ele possui impedimento de aproximação; Lúcia quer Paulo, mas também possui impedimentos. É fácil, agora, entender como se arma o conflito do romance: Paulo x Lúcia - Há motivos de aproximação e de afastamento entre ambos. E do jogo aproximação-afastamento. Chegamos a uma composição final. A composição é desejada por ambos, mas é preciso que antes muitas arestas sejam aparadas. Não é graciosamente que o ser humano se completa a se acha, mas através de muita luta e muito erro (penitência para superação dos defeitos).

Esta colocação do foco narrativo do romance vem confirmar ideias anteriores, onde se mostrou que a história de Paulo e Lúcia está vazada de situações desarmônicas. Tais situações podem ser melhor entendidas quando sintetizadas em algumas oposições que parecem predominar na obra como ideias centrais. Tais como:

O desnível da situação social - Em Lucíola os conflitos das personagens e entre personagens são determinados pelo confronto do indivíduo com essa sociedade. Há um desnível enorme entre a situação social de Paulo e Lúcia. Esta é prostituta e como tal é vista e rejeitada por todos, inclusive por Paulo, no início. Trata-se de um impedimento sério na aproximação de ambos. Tão sério que acaba por impedir a concretização social (casamento, geração de filhos) do amor do casal. Lúcia errou e deve pagar por isso perante a sociedade. As convenções da moralidade burguesa e da Escola Romântica assim o exigem. O casamento com final feliz do romance romântico não se realiza. Lúcia deve morrer. 

Uma das problemáticas centrais  levantadas no livro, parece, portanto, esta: a imposição das convenções sociais, criando obstáculos ao par amoroso, sacrificando-lhe a realização de um amor que não se adequava aos seus padrões rigorosos, se bem que por vezes hipocritamente condescendentes.

O conflito entre o bem e o mal - Das muitas oposições enfocadas no livro, esta é a mais importante, agindo como base do enredo e do foco narrativo. Trata-se de uma tendência própria do Romantismo que se traduz na "desarmonia" de situações e sentimentos. 

Há uma dualidade no caráter de Lúcia: de um lado a mulher, meretriz, depravada, desprezada pela sociedade, encarnacão do MAL; de outro, a menina inocente que ainda teima em substituir nela por mais terríveis que tenham sido os imperativos do vício naquela alma. É a permanência do BEM. "Havia no meu coração certos germes de virtude que eu não podia arrancar, e que ainda nos excessos do vício não me deixavam cometer uma ação vil." E durante todo o tempo, pretende o autor convencer o leitor da "criatura angélica" que habita o corpo da pecadora, da "mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d'alma". E é essa Lúcia de "coração virgem", purificada, que renasce nos últimos capítulos graças ao amor de Paulo. 

A vitória do amor - E chega-se, afinal, à temática básica de Lucíola. A intriga é calcada em assunto romântico: A situação social da mulher em face do amor. Do "amor" como o concebe o Romantismo: sublimado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos, que está acima dos fatores sócio-econômicos, que triunfa apesar das convenções sociais.


Em Lucíola, o triunfo do amor não foi na linha do final feliz. Lúcia passará por um processo de transformação, ou renascimento, que fará desabrochar a adolescente pura e ingênua que fora um dia, ao mesmo tempo que irá eliminando a cortesã impudica. E a protagonista alcança, portanto, a purificação através do amor espiritual, que não pode ser contaminado e profanado pela mais leve sombra de desejo físico. É a vitória do amor, numa outra perspectiva. É a temática central do romance: o amor como força regeneradora.

O romance, na sua intriga e temática, bem como no posicionamento das personagens, pode ser visualizado graficamente assim: na busca mútua de Lúcia e Paulo, há personagens que se posicionam como obstáculos, no sentido de impedir o surgimento do amor dos dois: Couto, Sá, Cunha, Rochinha. Outros são basicamente neutros: Jesuína, Jacinto, Laura e Nina. E há uma, Ana, que se coloca no sentido de aproximar o par romântico, a tal ponto de, conforme o desejo de Lúcia, ser um símbolo de perpetuação, na terra, do amor do casal.

Enredo

Paulo Silva, o personagem-narrador, é um rapaz de 25 anos, pernambucano, recém-chegado ao Rio de Janeiro, em 1855, com a intenção de aí se estabelecer.

No dia mesmo de sua chegada à corte (Rio de Janeiro), após o jantar, sai em companhia de um amigo para conhecer a cidade. Na rua das Mangueiras vê passar em um carro uma jovem muito bela. Um imprevisto faz parar o carro, dando a Paulo a oportunidade de repará-la melhor. Dia após, em companhia de outro amigo, o Dr. Sá, Paulo participa da festa de N. Senhora da Glória, quando lhe aparece a linda moça. Informando-se do amigo, fica sabendo tratar-se de Lúcia, a prostituta mais bela, requintada e disputada da cidade. Mas ele se impressiona com a "expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelam a cortesã franca e impudente." 

Mais ou menos um mês após sua chegada, Paulo vai à procura de Lúcia, levado, é claro pelo desejo de possuir aquela linda mulher. Após longa e agradável conversa, acaba se surpreendendo com o "casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa". A um mínimo lance de seus seios, "ela se enrubesceu como uma menina e fechou o roupão" discretamente. E ele, que fora quente de desejos, agora, na rua, se acha ridículo por não haver ousado mais. Além do que, o Dr. Sá lhe confirmara que "Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de extravagância." 

No dia seguinte Paulo está de volta à casa da heroína. Ao seu primeiro ataque, Lúcia se opõe com duas lágrima nos olhos. Supondo ser fingimento, mostra-se aborrecido e ela reage  atirando-se completamente nua em seus braços, já que era isso que Paulo queria. Mas no auge do prazer do sexo, Paulo percebe algo diferente nas carícias de Lúcia: mesmo no clímax do gozo, parece que ela sofria. Sente, na hora, um imenso dó, ao que ela corresponde cinicamente: "- Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve a velhice às mulheres como eu?" Ele quer pagar-lhe, ela rejeita com um meigo aperto de mão. E ele retira-se realmente confuso com "a singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora". 

E as informações que lhe chegam a seu respeito são as piores. O Cunha diz que ela é "a mais bonita mulher do Rio e também a mais caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende. "Nunca fica muito tempo com o mesmo amante, "pois não admite que ninguém adquira direitos sobre ela." Além do mais, é avarenta. Vende tudo o que ganha. Até roupas. Para Paulo, no entanto, ela parece ser ao contrário de tudo isso. Afinal, ela finge para ele ou já o ama? Paulo fica em dúvida atroz. 

Por aqueles dias, numa ceia em casa do Sá, com pessoas (Lúcia, Paulo, Sr. Couto, Laura, Nina, Rochinha, etc...) maldosamente convidadas para transformar a ceia em bacanal, Lúcia desfila toda nua, imitando as poses lascivas dos quadros que estavam nas paredes, ante os olhares voluptuosos dos presentes. Depois, em lágrimas, nos jardins da casa, ela se explica a Paulo. Fez aquilo por desespero, pois ele havia zombado dela momentos antes: "se o Senhor não zombasse de mim, não o teria feito por coisa alguma deste mundo..."E depois porque teria sido uma decepção total, afinal o que Sá pretendia era mostrar a seu amigo Paulo quem era Lúcia. "Não foi para isso que se deu essa ceia?! - explicou Lúcia. E os dois se amaram profundamente, lá mesmo no jardim, á luz da lua, até de madrugada. 

Decorridos alguns dias, Paulo de certo modo passa a morar com Lúcia, e, apesar das prevenções e restrições, mais e mais se liga a ela por afeto. Lúcia, por sua vez, já ama Paulo e se entrega e ele como a um dono e senhor. Há momentos de atritos entre ambos. Passageiros, e todos causados pelo egoísmo e incompreensão de Paulo que não entende as profundas transformações que o seu afeto operou nela. E a tal ponto , que ela não suportaria mais a idéia de se lhe entregar na cama, pois sente por ele um amor muito puro e profundo. E ele, levado mais por desejo que por afeto, não consegue aceitar esse comportamento sublime. 

As más línguas já comentam que Paulo, além de viver à custa de Lúcia, ainda a proíbe de frequentar a sociedade. Lúcia que já então procurava viver mais retraída dispõe-se a voltar à vida mundana apenas  para salvar-lhe a reputação. Mas Paulo - complicado, sádico, estúpido e chato - não compreende. 

Lúcia já não vibra como outrora. Mesmo quando excitada por Paulo. É a doença que já se faz sentir. Paulo não entende essa frieza e por vezes se exaspera. Ela sofre calada pois reconhece que "o amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe!". O grande sentimento que os unia, arrefece, dando lugar a uma amizade simplesmente. 

O comportamento de Lúcia é cada vez mais sublime e heroico. Já não existe mais nada da antiga cortesã. E Paulo, por fim, entende essa nobreza de caráter e compreende o porquê das suas recusas. Ela lhe recusava o corpo porque o amava em espírito. E também porque já está doente. Paulo promete respeitá-la de ora em diante.

Lúcia um dia lhe revela todo o seu passado. Chamava-se Maria da Glória. Era uma menina feliz de 14 anos e morava com os pais, quando, em 1850, sobreveio a terrível febre amarela. Seus pais, os três irmãos, uma tia caíram de cama, Ela ficou só. No auge do desespero, resolveu pedir ajuda a um vizinho rico, Sr. Couto, que em troca de algumas moedas de ouro tirou-lhe a inocência. "o dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança." Seu pai, porém, sabendo da origem do dinheiro, e supondo ter a filha um amante, a expulsou de casa. Sozinha, sem ter aonde ir, foi acolhida por uma mulher, Jesuína, que, quinze dias depois, à conduziu à prostituição, estipulando pela beleza de seu corpo um alto preço. O dinheiro, ela o usava para cuidar do que restava da família: "e eu tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã". 

Uma colega de infortúnio foi morar com ela. Chamava-se Lúcia. Tornaram-se amigas. Lúcia morreu pouco depois. No atestado de óbito, a heroína fez constar que a falecida se chamava Maria da Glória, adotando para si o nome da amiga morta. "Morri pois para o mundo e para minha família. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha prostituída." E todo dinheiro que ganhava, destinava-o à preparação de um dote para sua irmã, Ana, a qual passou a manter num colégio interno depois da morte dos pais. 

Agora Paulo compreende ainda melhor as atitudes misteriosas e contraditórias que Lúcia tomava como cortesã. É que esse gênero de vida lhe parecia sórdido e abjeto. Ela suportava como a um martírio, uma autopunição, uma maneira de reparar o seu pecado. Conhecido se passado heroico, ele passa a sentir por Lúcia uma grande ternura e um amor sincero. 

Seguem-se dias tranquilos. Lúcia muda-se para uma casinha modesta e Ana mora com ela. "isto não pode durar muito! É impossível!" É o pressentimento da morte. Lúcia tenta convencer Paulo a se casar com Ana, que já o ama também. Seria uma maneira de perpetuar o amor de ambos, já que ela se julga indigna do puro amor conjugal. Paulo rejeita com  veemência em nome do amor que não sente por Ana.

Lúcia aborta o filho que esperava de Paulo. Ela se recusa a tomar remédio para expelir o feto morto, dizendo "Sua mãe lhe servirá de túmulo". E já no leito de morte, recebe o juramento de Paulo prometendo-lhe cuidar de Ana como sua filha. E morre docemente nos braços de seu amado, indo amá-lo por toda a eternidade.
FONTES: 


domingo, 19 de agosto de 2012

E agora, mãe? Entrevista com a autora Isabel Vieira


A história desta história



Você se baseou em uma história real?

Baseei-me em várias histórias semelhantes. Em 1987, quando eu trabalhava em Capricho, editei uma matéria sobre gravidez precoce. Naquela época, já me chamava a atenção que tantas garotas se tornassem mães tão cedo. Antes de escrever o livro, entrevistei especialistas para entender as razões do problema. A doutora Albertina Takiuti, que coordenava o Programa de Atendimento à Saúde do Adolescente do SUDS-SP, me cedeu uma pesquisa que ela havia feito. Foi de onde tirei os dados para criar a protagonista do livro. Jana age, pensa e sente como a maioria das garotas de classe média que engravida na adolescência. Talvez por isso ela pareça tão real.


Rio Largo existe?
É uma cidade fictícia, mas com características de muitas cidades médias do estado de São Paulo. Situei a história no interior porque o preconceito tende a ser maior em lugares menores. Se Jana vivesse numa metrópole, talvez não fosse tão discriminada como em Rio Largo.






O que acha da atitude de Ivan, fugindo da responsabilidade?

A atitude covarde de Ivan e de sua família espelha um pensamento conservador, segundo o qual a mulher é “culpada” pela gravidez. Como se o homem não tivesse participado do ato. Felizmente, isso vem mudando. É preciso lembrar que o livro foi publicado em 1991. De lá para cá, tenho visto avós paternos que assumem os netos e pais solteiros que registram, pagam pensão e convivem com a criança. É o que todos deveriam fazer.






Qual a sua posição a respeito do aborto?

No capítulo 5, levanto algumas questões sobre aborto. Uma delas é que o médico aborteiro só age porque pacientes o procuram. O que quero dizer? A maioria das pessoas condena o aborto, mas o Brasil é um dos campeões mundiais de aborto clandestino. Então, alguma coisa está errada... Penso que o aborto deve ser discutido com menos hipocrisia. É bonito defender a vida, mas só isso não basta. É preciso dar condições para que a vida se desenvolva. Nenhuma mulher aborta por prazer. Sou a favor de se educar as mulheres para que só engravidem se puderem criar o bebê.





Se uma de suas filhas engravidasse, como você reagiria?

Felizmente, elas só tiveram filhos depois de casadas (tenho quatro netos). Quando eram adolescentes, caso engravidassem, eu teria uma reação parecida com a da mãe de Jana. Ficaria brava, pois elas não poderiam alegar falta de informação ou de diálogo. Mas acabaria ajudando, desde que a mãe assumisse sua responsabilidade. Não acho certo os avós arcarem com a criação do neto para poupar a filha dos problemas.





Por que Jana e Ivan não ficam juntos? Que final infeliz!

A vida real não é como a novela das sete: nos últimos capítulos os conflitos se resolvem e todos encontram seu par. Não digo que seja impossível, mas é raro um amor como o de Jana e Ivan dar certo. Ela se decepcionou com ele, o encanto se quebrou. Mas não acho o final infeliz. Jana foi valente, conseguiu criar Gabi e tocar sua vida. Só anos depois, em E agora, filha?, Jana vai encontrar quem a mereça. 






O que você quis dizer com essa história?

Que o melhor é não engravidar, pois as três opções que existem quando isso acontece – o aborto, o casamento precoce ou ser mãe solteira – são igualmente dolorosas e difíceis. Escolhi para minha personagem a que eu considero a mais nobre: assumir as conseqüências de seus atos. Mas não foi fácil. Por isso, olhos abertos! Há muita coisa que uma menina deve fazer antes de assumir um compromisso tão sério. Filho é para sempre e não tem volta.



RESENHA DO LIVRO

E agora, mãe?" É um livro que conta a história de Jana, uma jovem de 14 anos que tem o sonho de ser uma grande bailarina, até que um imprevisto muda todo o seu destino. Ela engravida, o pai da criança vai para os Estados Unidos e some. E toda a sua vida muda por causa dessa nova criança que está a caminho. Ela começa a ver o seu corpo e seu temperamento mudar.Vê a pequena cidade onde sempre viveu torcer o nariz para ela. Seus pais... E o seu maior sonho... Indo por água abaixo.

A autora consegue mostrar bem a transição da Jana de quando ela estava com 14 anos para a idade dos 19. É bem visto o modo como Jana enfrenta as responsabilidades de ser uma jovem mãe, de ter que trabalhar fora e ainda ter que se preocupar se está atrapalhando a tia ou não, já que logo depois ela se mudou para São Paulo, para a casa da tia. A autora também conseguiu passar muito bem todas as frustrações dela de ver sua amiga de Ballet se dando tão bem com a dança, enquanto ela tinha de ficar em casa, cuidando da filha...





sexta-feira, 17 de agosto de 2012

REGRAS PARA UMA BOA REDAÇÃO


1.       Deve-se evitar ao máx. a utiliz. de abrev. etc.
2.       É desnecessário empregar estilo de escrita demasiadamente rebuscado. Tal prática advém de esmero excessivo que raia o exibicionismo narcisístico.
3.       Anule aliterações... pois, pode provocar picos nas pupilas degustativas. 
4.       não esqueça as maiúsculas no início das frases.
5.       Evite lugares-comuns como o diabo foge da cruz. 
6.       O uso de parênteses (mesmo quando for relevante) é desnecessário. 
7.       Estrangeirismos estão out; palavras de origem portuguesa estão in.
8.       Evite o emprego de gíria, mesmo que pareça nice, sacou?? ...então valeu!
9.       Palavras de baixo calão podem transformar seu texto numa "m...". 
10.   Nunca generalize: generalizar é um erro em todas as situações.
11.   Evite repetir a mesma palavra, pois essa palavra vai ficar uma palavra repetitiva. A repetição da palavra vai fazer com que a palavra repetida desqualifique o texto em que a palavra se encontra repetida.
12.   Não abuse das citações. Como costuma dizer um amigo meu: "Quem cita os outros não tem ideias próprias". 
13.   Frases incompletas podem causar... pois...
14.   Não seja redundante, não é preciso dizer a mesma coisa de formas diferentes; isto é, basta mencionar cada argumento uma só vez, ou, por outras palavras, não repita a mesma ideia várias vezes. 
15.   Seja mais ou menos específico.
16.   Frases com apenas uma palavra? Jamais! 
17.   A voz passiva deve ser evitada. 
18.   Utilize a pontuação corretamente especialmente o ponto e a vírgula pois a frase poderá ficar sem sentido será que ninguém mais sabe utilizar o ponto de interrogação?
19.   Quem precisa de perguntas retóricas? 
20.   Conforme recomenda a A.G.O.P, nunca use siglas desconhecidas.
21.   Exagerar é cem milhões de vezes pior do que a moderação. 
22.   Evite mesóclises. Repita comigo: "mesóclises: evitá-las-ei!"
23.   Analogias na escrita são tão úteis quantos chifres numa galinha. 
24.   Não abuse das exclamações! Nunca!!! O texto fica horrível!!!!! 
25.   Evite frases exageradamente longas, pois estas dificultam a compreensão das ideias nelas contidas e, por conterem mais que uma ideia central, o que nem sempre torna o seu conteúdo acessível, forçam, dessa forma, o pobre leitor a separá-la nos seus diversos componentes de forma a torná-las compreensíveis, o que não deveria ser, afinal de contas, parte do processo da leitura, hábito que devemos estimular através do uso de frases mais curtas. 
26.   Cuidado com a hortografia, para não estrupar a língúa portuguêza. 
27.   Seja incisivo e coerente; ou não... 
28.   Não fique escrevendo (nem falando) no gerúndio. Você vai estar deixando seu texto pobre e estar causando ambiguidade, com certeza você vai estar deixando o conteúdo esquisito, vai estar ficando com a sensação de que as coisas ainda estão acontecendo. E como você vai estar lendo este texto, tenho certeza que você vai estar prestando atenção e vai estar repassando aos seus amigos, que vão estar entendendo e vão estar pensando em não estar falando dessa maneira irritante.
29.   Outra barbaridade que tu deves evitar chê, é usar muitas expressões que acabem por denunciar a região onde tu moras... nada de mandar esse trem... vixi... entendeu, bichinho? 
30.   Não permita que seu texto acabe por rimar, porque senão ninguém irá aguentar, já que é insuportável o mesmo final escutar, o tempo todo sem parar. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Tratamento cerimonioso em segunda pessoa no discurso religioso: um caso de Tradição Discursiva


O TRATAMENTO CERIMONIOSO DE SEGUNDA PESSOA EM DISCURSO RELIGIOSO: UM CASO DE TRADIÇÃO DISCURSIVA
Por Flavio Lima
RESUMO: Este artigo focaliza o uso da forma pronominal tu com concordância, nos contextos de formalismo e cerimonialismo do discurso religioso. Foi analisado um corpus de fala constituído de orações dos fiéis evangélicos durante cultos religiosos a fim de testar o comportamento da forma pronominal procurando verificar a hipótese de que, nesses contextos, haveria uma tendência à produção da forma culta (tu com concordância). Os resultados gerais apontam para o uso categórico dessas formas no corpus selecionado e revelam, também, que se trata de um caso de Tradição Diacursiva do gênero oral em questão (orações religiosas).

ABSTRACT: This article focuses on the use of the pronoun form you agree with, in the contexts of formalism and ceremonialism of religious discourse. We analyzed a speech corpus consisting of prayers of the faithful evangelicals during religious services in order to test the behavior of pronominal form trying to verify the hypothesis that, in these contexts, there was a tendency to produce cultured fashion (you agree with). The overall results point to the use of these categorical forms in the corpus selected and also show that this is a case of oral Discursive Tradition of the genre in question (religious prayers).

Introdução
O presente trabalho tem a finalidade de analisar as forma pronominal tu no discurso religioso. Percebeu-se que a forma, neste contexto, é usada com concordância verbal, contrariando a tendência apontada por estudos recentes de expressão de (tu) sem concordância e substituição desse pronome por você.  
Assim, pretende-se investigar a ocorrência dessas formas no discurso religioso, a fim de se analisar se, nesse contexto, o falante obedece à tendência atual (LOPES, 2007; SILVA e BARCIA, 2007), ou é influenciado pela atmosfera religiosa, de formalismo e cerimonialismo, tendendo a produzir estruturas com tu com concordância. Esse formalismo seria marcado em contexto em que os fiéis se direcionam a Deus – a segunda pessoa. Haveria nesse diálogo uma pressão hierárquica que leva o suplicante a usar uma estrutura mais formal.
O estudo será baseado em uma análise qualitativa e quantitativa de sermões e orações proferidas dentro dos templos evangélicos e obtidas na internet.
Tomamos como base a questão levantada por Lopes (2007), a qual declara que as formas de tratamento tu e vós ainda poderiam existir. O pronome “vós”, tratado em estudos anteriores, apesar de não ser usado, ainda poderá ser encontrado nos templos religiosos por ser tratar de um uso mais formal (arcaizante). Entretanto, para o presente estudo, limitar- nos-emos em estudar tal forma a partir de uma revisão teórica, uma vez que só haveria contexto para sua produção em sermões, nos quais o pregador se dirija ao povo, aos fiéis. O corpus estudado constitui-se em orações, conversas formais entre o fiel com Deus, situação em que só se pode evidenciar a concorrência entre a forma tu com concordância e a mesma sem concordância. 
Para a composição do corpus, foram selecionados sete vídeos de orações evangélicas,  – no endereço www.youtube.com.br, uma vez que desconhecemos a existência de um material desse tipo nas academias. Todos foram escutados a fim de que os dados fossem coletados.
Com os dados coletados passou-se a contagem, desenvolvendo-se a análise quantitativa.
Depois das análises, levou-se em consideração a necessidade de se tomar como pressuposto teórico a teoria da Tradição Discursiva proposta por Eugênio Coseriu in Kabatek (2006). Tal teoria apresenta uma explicação do porquê de determinada forma passar a ser usual em detrimento de outra em certo gênero discursivo oral ou escrito; é um ato linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação, mas relaciona também esse texto com outros textos de uma mesma tradição. Consideramos que a expressão de concordância no uso do tu é, na verdade, Tradição Discursiva do discurso religioso, em contexto de cerimonialismo no diálogo com a entidade superior, Deus.

1.      Revisão gramatical.
As diversas gramáticas normativas não divergem quanto ao uso dos pronomes “tu” e “vós” e como eles se apresentam, ou seja, como caracterizadores universais de segunda pessoa do discurso (com quem se fala). O quadro pronominal tradicional, no qual estão contempladas tais formas, ainda é sustentado pelos gramáticos como Bechara (1999), Cunha & Cintra (1999), Rocha Lima (1991); entre outros.
A gramática normativa prescreve que são duas as pessoas determinadas do discurso: primeira eu - a pessoa correspondente ao falante - e segunda tu - correspondente ao ouvinte - como também seus plurais “nós” e “vós”.

Veja, a seguir, o quadro adotado pela gramática, retirado de Cunha (1999):

Singular
Plural
1ª pessoa
EU
NÓS
2ª pessoa
TU
VÓS
3ª pessoa
ELE / ELA
ELES / ELAS

Azeredo (2000, p. 121) contempla, no seu quadro pronominal, a forma “você” como pertencente ao quadro de pronomes pessoais do caso reto: “O indivíduo a que o eu se dirige – segunda pessoa, do singular ou plural (tu/vós, você/vocês).”
Embora o quadro esteja completo, o “vós” tem desaparecido da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Como aponta os gramáticos. Cunha e Cintra (1985) comenta sobre a presença do pronome vós sendo usado em alguns discursos:

O pronome vós praticamente desapareceu da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Mas em discursos enfáticos alguns oradores ainda se servem da 2ª pessoa do plural para se dirigirem cerimoniosamente a um auditório qualificado. (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 277)

Mesquita (1995) aponta como raridade na linguagem coloquial do português do Brasil. Faraco & Moura (2001) também reconhecem que esse pronome é bastante raro e declaram:
O pronome vós, comum em discursos cerimoniosos e no texto religioso, é bastante raro na linguagem corrente do Brasil atual. Atualmente pode aparecer com sentido irônico:
Ex: Abandonai toda esperança vós que entrais nos supermercados da assistência médica. A compra de um plano de saúde exige tantos cuidados quanto adquirir um carro usado. (Veja) – (FARACO e MOURA, 2001, p. 288)

Em relação ao pronome “tu”, esses autores afirmam que o uso do tu sem concordância está ocorrendo em várias regiões do Brasil, mas são contundentes em declarar que, no Rio de Janeiro, é comum ocorrer o cruzamento coloquial entre o pronome de tratamento de segunda pessoa com a forma verbal de terceira pessoa quase categoricamente. Observe, a seguir, um exemplo desses autores e outro do corpus pesquisado:

Ex: “Tu não me enrola, não.” (Folha de São Paulo) - (FARACO e MOURA, 2001, p. 288)
Tu vai comer aonde?” (AF – 2009).
A gramática normativa sinaliza que constitui em erro esse tipo de construção, pois o verbo tem que concordar com o sujeito que lhe serve de base.
Mesquita (1996, p. 221) retoma as afirmações de Cunha e Cintra (1985), expostas na Nova Gramática do Português Contemporânea. Dizem:

“No português do Brasil, o uso de tu restringe-se ao extremo Sul do País e alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente delimitados. Em quase todo o território brasileiro, foi ele substituído por você como forma de intimidade. Você também se emprega, fora do campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou de superior para inferior.” – (CUNHA e CINTRA – 1985)
2.    Estudos recentes.
Alguns autores têm discutido a respeito das formas de tratamento, porém, daremos uma atenção especial ao estudo de Lopes (2007) in Vieira e Brandão (2007, p. 115), uma vez que ela apresenta os resultados de sua pesquisa sobre a variação em questão. Observe o quadro pronominal proposto pela autora:
Pessoa
Pronome Sujeito
Pronome Complemento direto
Possessivos
P 1
Eu
me
Meu / minha
P 2
Tu / você
Te, lhe, (se), você
Teu/tua/seu/sua / de você
P 3
Ele / ela
O, a, (se) / lhe / ele (a)
Seu / sua / dele (a)
P 4
Nós / a gente
Nós / a gente
Nosso (a) / da gente
P 5
Vocês
Vocês / lhe / se
Seu(s)/ sua(s)/ de vocês
P 6
Eles / elas
Os, as (se) / lhes / eles (as)
Seu(s) / sua(s) / deles(as)

Lopes (2007) propõe uma re-organização em um novo quadro pronominal, contudo, deixa bem claro que este quadro está longe de ter uma verdadeira coerência interna e, principalmente, dar conta da realidade concreta do português no Brasil.
Um dos pontos principais, como afirma a autora, é de que o pronome “vós”, tratado em estudos anteriores, apesar de não ser usado, ainda poderá ser encontrado nos templos religiosos por ser tratar de um uso mais formal (arcaizante). Este, tendo como base os escritos religiosos, é ouvido em sermões e orações proferidas por falantes de diversos segmentos educacionais. Esta hipótese também é sustentada por gramáticos como Cunha e Cintra (1995), re-afirmada por Mesquita (2001), entre outros.
Lopes (2007) conclui que se deve ensinar as variações como também os arcaizantes já que, ao se reter o ensino do “vós” e “tu”, poder-se-ia dificultar a leitura de grandes obras como a Carta de Caminha. A autora declara:

Defende-se a apresentação do que é normal, usual e frequente no português brasileiro, sem perder de vista o que está disponível na nossa literatura, na nossa língua, na nossa história. São os diferentes saberes envolvidos, “saberes lingüísticos na escola”: a norma vernácula, o saber descritivo/prescritivo e o saber do professor. Um saber não anula o outro. (friso meu).
Como se percebe, há muito ainda por descrever, explicar, entender e, parafraseando João Ubaldo, “vamos estudando, somos ignorantes, havemos de aprender. Nosso consolo é que muitas das coisas que nos afligem (ou que afligem a gente) devem afligir vocês também”. (LOPES, 2007, p. 116)


Além de Lopes (2007), outros autores se interessaram por estudar a variação entre o “tu” e “você”. Realizando estudos em Minas Gerais, Silva & Barcia (2002) perceberam que o uso de “você” foi mais abrangente no século XVIII. Porém, no século XIX a forma pronominal “tu” é a mais empregada. Declara Silva & Barcia (2002):

O quarto grupo - relação entre emissor-destinatário - evidencia que a forma tu suplanta o uso de você tanto nas relações pessoais simétricas de amizade (amigos, primos, etc.) quanto nas relações íntimas de família (avós, netos). Todavia, verifica-se que a forma você, uma variante em vias de gramaticalização, ocorre preferencialmente nas relações íntimas de família, marcadas, ainda, por uma relação assimétrica (superior-inferior), basicamente, entre avô e neto e entre pai e filho (.99). O caráter de uma certa reverência ou respeito advindo da forma original Vossa mercê ainda não se tinha perdido por completo na variante vulgar você. (SILVA e BARCIA, Ao Pé da Letra, p. 7)

Da mesma forma que, no caso estudado pelas autoras, no qual o falante usa o “tu” e o “você” por grau de intimidade (superior/inferior; formal/informal) (MOTA, 2008 in SILVA e BARCIA, 2002),  o religioso, também tende a usar o “tu” em uso mais formal, por Deus se tratar de um ser superior.
Outros linguistas e gramáticos defendem a ideia de que o pronome tu foi derribado pelo você na variedade brasileira do português. Esse fenômeno, segundo Duarte (1993), está relacionado com outras variações no sistema do português. Ela defende a hipótese de que, com o emprego do pronome você em lugar do pronome ‘tu’, deu-se a redução no quadro de desinências verbais. De um paradigma formado de seis pessoas distintas, passou-se a um paradigma de quatro formas: eu canto, você/ele canta, nós cantamos, vocês/eles cantam. Esse paradigma coexiste com outro de três formas, decorrente do uso da expressão a gente, em lugar do pronome nós estudado por Lopes (2007).
Essa redução pode ser observada no quadro a seguir proposto no livro viver e aprender- português - 3ª Série – cujos autores são Cloder Rivas Martos e Joana D’arc Gonçalves de Aguiar, (pág. 177). Embora seja um livro do primeiro segmento do Ensino fundamental, considera-se de grande relevância esta nova proposta, pois pode se constituir em uma mudança de postura em relação ao ensino das formas pronominais pouco usadas, o que contrariaria a visão se Lopes (2007) sobre esse assunto.

ACORDAR
Presente
Pretérito
Futuro
Eu acordo
Eu acordei
Eu acordarei
Tu acordas
Tu acordaste
Tu acordarás
Ele, ela acorda
Ele, ela acordou
Ele, ela acordará
Nós acordamos
Nós acordamos
Nós acordaremos
Eles, elas acordam
Eles, elas acordaram
Eles, elas acordarão

Como pode ser observado, a forma vós é retirada do quadro. O autor a menciona no capítulo de pronomes pessoais do caso reto como uma forma “atualmente pouco usada”. No capítulo referente a verbo, no qual está inserido o quadro acima, não há menção a tal forma e as atividades propostas obedecem ao paradigma utilizado no quadro. Ou seja, em nenhum momento, neste capítulo, o aluno entra em contato coma flexão verbal de segunda pessoa do plural. Essa situação vai de encontro à proposta de Lopes (2007) que discute a necessidade de que o vós seja mantido nos quadros gramaticais para a manutenção do conhecimento.
Na próxima seção, apresentaremos alguns conceitos da teoria que norteou esta pesquisa (Tradição Discursiva).
3.    Pressupostos teórico-metodológicos
Como dito na introdução, deseja-se justificar a preferência da expressão de tu com concordância como reflexo de tradições discursivas religiosas.
Segundo Kabatek (2006, p. 512):
Tradição Discursiva (TD) é a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.

Company Company (2002) discute o fato de um fenômeno poder ter sua aplicabilidade diferenciada a depender do gênero do discurso, ou seja, o gênero discursivo pode ser condicionante tanto da criação das inovações sintáticas quanto de sua difusão. Essa discussão nos interessa, uma vez que se entende que os gêneros orais religiosos, por serem produzidos em contexto de extrema cerimônia, podem ser condicionantes do uso da estrutura tu com concordância.
Na tentativa de relacionar a TD à mudança linguística, Kabatek (2006) aponta que as TDs podem “frear ou acelerar” mudanças linguísticas. Determinados tipos de textos, segundo ele, exigem a manutenção de certas fórmulas ou seleção de “variedades”. No caso da presente pesquisa, cabe a discussão sobre a possibilidade das TDs religiosas se constituírem em “freio” para o processo de mudança linguística apontada por Lopes (2007), uma vez que, no contexto religioso o tu  está sendo usado com concordância, opondo-se a tendência da variação tu sem concordância apontada por estudos recentes.
Na seção seguinte, passaremos a mostrar os resultados obtidos com a pesquisa nas orações retiradas na internet.


4.    A forma "tu" no discurso religioso.
Sobre as formas de segunda pessoa, Lopes (2007) declara (1) ser um equívoco “deixar de apresentar aos alunos o atual sistema em toda sua complexidade” como também “não mencionar a existência dos pronomes em desuso” ocasionando um dano ainda maior. (2) “que deve se tratar de um conhecimento passivo que precisa estar disponível, para que seja possível ler um texto de sincronias passadas (o cancioneiro medieval ou poesia trovadoresca dos primeiros tempos de nossa história, a Carta de Caminha, a poesia, os romances do amigo).” Nós vamos além disso, ampliando os exemplos citados, pois devemos considerar tal conhecimento necessário para a compreensão também dos textos bíblicos e do discurso religioso de um modo geral, ou seja, as formas “tu” e “vós” participam do cotidiano linguístico dos cristãos.
Baseando-se na afirmação de Silva & Barcia (2002), percebe-se que o falante escolhe os pronomes de acordo com o grau cerimonioso ou de intimidade. Ao se falar com um co-igual, é marcante a presença da variante não padrão (tu sem concordância), porém, ao se falar com Deus, através de orações, escolhe-se a forma padrão “tu com concordância”.
Observe os exemplos a seguir:
a)    “Senhor, tu que habitas no alto e sublime trono... ouve meu clamor” (AF – 2009).
b) “irmão, tu sabe (b’) que Deus pode te salvar  ... então, diga para ele: Senhor tu tens (b’’) todo o poder e podes me livrar!” (AF – 2009)
c) “Deus soberano e fiel, que tens todo o poder em tuas mãos.” (JM – 2009)
Nos exemplos apresentados percebe-se a presença marcante da variante padrão “tu” com concordância ao invés do uso da variante não-padrão (tu sem concordância). No exemplo “b” o falante profere na mesma sentença a variante não-padrão e a variante padrão. Observa-se em b’ o uso da variante não-padrão, no diálogo do falante com o público, ou seja, seus co-iguais; contudo, ele escolhe a padrão para ensinar como o indivíduo inicia uma oração (conversa) com Deus (b’’). A hipótese de Silva & Barcia (2007) aplica-se perfeitamente ao exemplo, pois declaram que o falante escolhe o pronome de acordo com o grau de intimidade; no caso citado, o seu interlocutor é Deus. Por ser Deus um ser considerado supremo, divino, santo, superior, escolhe-se usar a variante padrão.
No caso dos exemplos a e c, o falante está em pleno contato com seu interlocutor que é Deus e, por isso, tende a usar a variante padrão “tu” com a devida concordância. Entendemos que a forma não-padrão (expressão de tu sem concordância) evidencia o vernáculo do falante (b’), que, segundo Labov (1994), é a língua isenta de influências externas. Provavelmente, em seu dia-a-dia, esse falante produza tu sem concordância, mas no contexto com um ser superior (Deus) tenderá a usar o tu com concordância, por conta de uma Tradição nesse discurso, ou seja, envolvido no cerimonialismo, esse falante tende a manter a “fórmula” tu com concordância conforme aponta Kabatek (2007).
A expressão de tu com concordância, evidenciada em b’’, para nós, é fruto do enquadramento do falante na situação de formalismo religioso, no contexto em que ele se sente totalmente inferior à entidade com a qual fala. Isso quer dizer que o uso dessa variante é justificado pela tradição discursiva do gênero oral no qual foi produzida. Ele deixa de discursar seu sermão, no qual se dirigi a co-iguais, e passa a criar um contexto de oração, súplica; situação em que se estabelece a tradição discursiva do discurso religioso. 
A partir de agora, analisar-se-á o corpus estudado. 
Foram selecionados sete (7) vídeos de orações. Quando pesquisou-se as formas pronominais nas orações proferidas, percebeu-se que, em todos os vídeos pesquisados, há 100% do uso do pronome “tu” obedecendo à norma culta (com concordância), todos eles relativos a Deus, ou seja, uso categórico.

Os dados apresentados abaixo foram retirados desses vídeos.
1.    Trechos retirados de (LM – 2009)
a)        “nós nos curvamos diante de Ti, pois tu és Senhor, tu és Senhor e Rei.” (LM-2009)

b)        “Deus, o Senhor sabe da condição de cada um, cada coração que está aqui nessa hora Pai. Tu sabes, Senhor, da condição de cada vida que se encontra nesta hora. Tu sabes, Senhor, a condição de cada vida que se encontra aqui nesta noite, neste lugar.” (LM – 2009)

c)        “...mas Senhor, tu és um que pode curar, tu és um Deus que pode trazer vida, tu és um Deus que podes trazer a paz!” (LM – 2009)
d)       “Abra, Senhor, o nosso entendimento para entender a tua palavra, para entender a tua grandiosidade, para saber, Senhor, que tu não és aquele que está distante.” (LM – 2009)

e)        tu podes, Senhor sondar o meu coração agora!  (LM – 2009)

f)         “pois tu sabes Senhor que as vezes até mesmo um sorriso nos lábios pode estar escondendo  amargura, pode estar escondendo a tristeza.”

g)        “Mas Senhor  tu és Deus que podes mudar, tu és um Deus que podes trazer vida! Tu és um Deus que podes trazer alegria!”

2.    Trecho da oração de (IEP – 2009)
h)        “Óh, Deus, tu que habitas em um alto e sublime trono, olha para nós! Queremos te louvar, te exaltar nesta noite!”
i)          “Óh Deus! Vem enxugar nossas lágrimas... vem restaurar tua igreja. Tu podes curá! Tu tens tudo o poder!”

j)          “Jesus amado! Manda seus anjos aqui para nos proteger! Envia uma legião de anjos para nos proteger papai! Tu tens a espada de fogo! Tu sabes de todas as coisas!”

k)        “Estamos celebrando este culto a ti papai! Vem com teu poder e glória... pois tu mandas brasa viva do altar!”

l)          “Jesus amado, vem nos ajudar... pisa na cabeça do diabo! Tu tens todo o poder papai!”
3.    Trechos da oração de (EF – 2009)
m)      “Porque sabemos Deus, que tu és o criador que criou os céus e a terra!” (EF – 2009)

n)        tu, Senhor, que visitas o pobre, o aflito, socorre-nos nesta noite!” (EF – 2009)

4.    Trechos da oração de (PJ – 2009)
o)        “salva a minha casa Senhor, salva o meu lar. Pois tu tens poder, tu podes  tudo!”

p)        “Oh Soberano Deus, tu és supremo, tu és tremendo, exaltado entre as nações!”

5.    Trechos da oração de (PMV – 2009)
q)        “Eu quero agora rasgar o meu coração. Tu sabes Deus aonde eu preciso.”

6.    Trechos da oração de (PAV – 2000)
r)         “Senhor Jesus, O Senhor é forte! Tu és Deus de milagres! Tu és Deus que restaura a nossa vida.”

7.    Trecho da oração de (APV – 2009)
s)         “Queremos caminhar por onde o Senhor caminha, por onde o Senhor caminhou, por onde o Senhor caminha hoje. Porque  tu estás conosco!”
t)          “nós queremos deixar tudo no teu altar Senhor, para que tu faças o que quiseres com a nossa vida!”
u)        “Para que  tu faças como quiseres com a nossa vida!”
v)        “do teu jeito, da tua maneira, quando quiseres se quiseres, Senhor.”
w)      “para mim o viver é Cristo.. óh és tu Senhor!”

x)        Percebeu-se que, em todos os dados analisados, o falante usou o “tu” e fez devidamente a concordância, ou seja, o uso é categórico. É importante destacar que até mesmo nos trechos em que o “tu” é elíptico, o verbo foi flexionado na segunda pessoa, como vemos em “Mas Senhor  tu és Deus que podes mudar, tu és um Deus que podes trazer vida! Tu és um Deus que podes trazer alegria!”. Entendemos que os falantes usam essa forma com naturalidade, e ressaltamos que essa é uma prática contrária à tendência atual, como apontam estudos gramaticais (FARACO e MOURA - 2001).
 A forma tu com concordância é amplamente usada pelos falantes, marcados pela cerimoniosidade e grau de intimidade com o interlocutor (Deus), não havendo, no corpus, a variante não-padrão (tu sem concordância) por motivo de o interlocutor não ser um co-igual e por se tratar de uma Tradição Discursiva.
A Tradição Discursiva desse gênero oral explica tal fenômeno. Os falantes reproduzem formas padrão, muitas vezes diferentes das representativas de seu vernáculo, pois estão inseridos numa comunidade de fala cuja referência é o texto bíblico, formal e tradicional.

5.    Considerações finais
Conclui-se, então, que mediante os dados apresentados, a forma tu com concordância é usada pelos falantes, em grande proporção, por estar relacionada a um ato cerimonioso e íntimo com seu interlocutor, neste caso, Deus.
A Tradição Discursiva no formalismo religioso faz com que o falante tendencione ao uso mais cerimonioso como afirma Silva & Barcia (2007), por seu interlocutor não se tratar de um co-igual.
O uso categórico do tu com concordância dispõe-no em um enquadramento de formalismo religioso, proveniente de uma tradição discursiva do gênero oral. Essa TD (discutida por KABATEK -2006) exige a manutenção desta fórmula (tu com concordância) que se constitui de um “freio” para o processo apontado por Lopes (2007), pois o falante não produz aconstrução eleita como preferida (tu sem concordância) por uma boa parcela da população (FARACO e MOURA - 2001).
O presente trabalho abre um campo de futura observação em relação ao uso de “vós” e à variação entre “tu” e “você” nas pregações. A hipótese seria a de que no momento de discurso ao povo, o pregador poderia usar uma das variantes; diferente situação atestamos nas orações em que o cristão se dirige a Deus, relação que exige maior formalidade. 


http://www.filologia.org.br/iv_jnlflp/resumos/o_tratamento_cerimonioso_de_segunda_FLAVIO.pdf


6.    Bibliografia:
AZEREDO, José Carlos de, 2000 – Fundamentos de gramática do português – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

BECHARA, Evanildo, 1928 – Moderna Gramática portuguesa – 37. Ed. ver. e ampl. – Rio de Janeiro : Lucerna, 1999.

COMPANY COMPANY, Cancepción. “Gramaticalización y dialetologia comparada. Uma isoglosa sintáctico-semántica del español”. DICENDA. Guardernos de Filologia Hipánica. 20:39-71,2002.

CUNHA, Celso e CINTRA, Luís F. Lindley – Nova Gramática do Português Contemporâneo – 2ª Ed. – 36ª impressão – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Do pronome nulo ao pronome pleno. In: ROBERTS, Ian; KATO, Mary (Org.). Português brasileiro: uma viagem diacrônica homenagem a Fernando Tarallo Campinas: Ed. da UNICAMP, 1993. p. 107-128. (Repertórios).

FARACO & MOURA (2001) , Gramática – 12ª edição e 3ª impressão, Editora Ática, São Paulo – SP.

KABATEK, Johannes: Tradições Discursivas e mudanças linguísticas, In; Lobo, Tânia, Ilza Ribeiro, Zenaide Carneiro & Norma Almeida (eds.): Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises, Salvador: EDUFBA, 2006.

LOPES, Célia Regina dos Santos – Pronomes Pessoais. In: VIEIRA, Silvia Rodrigues Vieira & BRANDÃO, Sílvia – Ensino do português – Rio de janeiro: Editora Contexto, 2007.

LOPES, Célia Regina dos Santos; MACHADO, Ana Carolina Morito. Tradição e inovação: indícios do sincretismo entre segunda e terceira pessoas nas cartas das avós. In: LOPES, Célia Regina dos Santos (Org.). Norma brasileira em construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Letras Vernáculas/FAPERJ, 2005. p. 45-66.

__________. Pronomes pessoais – In: VIEIRA, Sílvia Rodrigues e BRANDÃO, Sílvia Figueiredo (Org.), 2007 – Ensino de gramática: descrição e uso – Editora Contexto, São Paulo.

MARTOS, Clode Rivas e AGUIAR, Joana D’arc Gonçalves de – Viver e aprender português – 3ª série – Ed. Saraiva, Rio de Janeiro.

MESQUITA, Roberto Melo – Gramática da Língua Portuguesa – 5ª edição – São Paulo: Saraiva, 1996.

SILVA, Andreza da e BARCIA, Lucia Rosado - Vossa Mercê, você, vós, ou tu? - A flutuação de formas em cartas cariocas dos séculos XVIII e XIX – Ao Pé da Letra - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

WEINREICH, Uriel, LABOV, Willian & HERZOG, Marvin, (2006) Fundamento empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução de Marcos Bagno. Revisão Técnica de Carlos Alberto Faraco. Posfásio de maria da Conceição e Maria Eugênia Lamoglia Duarte. São Paulo: Parábola Editorial. A Sympisium (em 1966) editado por LEHMANN, W. P. & MALKIEL, Y. Drirections for Historical Linguistics. Austin – London: University of Texas Press, 1968. P. 95-195.

Links de vídeos de orações:
1.      http://www.youtube.com/watch?v=BC17vpvsZAU (Proferido pelo Levita Moisés – LM 2009)
2.      http://www.youtube.com/watch?v=movQviYeTYI&feature=related (Igreja Evangélica Pentecostal - IEP – 2009)
3.      http://www.youtube.com/watch?v=S73Tk4A-3Nw (Ernandes Fernades – EF – 2009)
– 2009) Duração 9:20 seg.
Igreja Batista da Lagoinha – Pr. Márcio Valadão – PMV – 2009)
6.      http://www.youtube.com/watch?v=FNbMj5Scx2Q (Pr. André Valadão – PAV – 2009) 6:00 min
7.      http://www.youtube.com/watch?v=8n_y1bO6QZk&feature=related (Ana Paula Valadão – APV – 2009) 09:51 seg