PENSAMENTOS E FRASES

“A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe."

(Jean Piaget)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Geração de 45 - O movimento


A geração de 1945 - Um retorno à forma
http://www.portugues.com.br/public/conteudo/images/geracao-1945_I.jpghttp://www.portugues.com.br/public/conteudo/images/geracao-1945_II.jpg


Clarice Lispector e Guimarães Rosa – representantes da geração de 45



Decorrida toda uma geração que inovou o cenário artístico brasileiro com o advento do Modernismo, no qual tanto se discutiu acerca de uma literatura de cunho verdadeiramente nacionalista como forma de desapego ao estilo “importado”, materializando-se pela habilidade prosaica de Mário de Andrade com seu Macunaíma, o herói sem caráter, por Oswald de Andrade com toda sua irreverência ao propor uma arte voltada para a liberdade de expressão e por tantas outras figuras que abrilhantaram as nossas letras de forma ímpar, deparamo-nos com a chegada de uma nova linhagem.


Desta feita, podemos dizer que tal geração mostrou-se um tanto quanto condicionada à forma, e não ao conteúdo propriamente dito. Tal afirmativa contextualiza-nos àquele pressuposto teórico de que as manifestações literárias que perfizeram todos os estilos de época tenderam, mutuamente, a se completar ou a se repudiar, todas sob uma dinâmica bastante complexa. Ao retratarmos acerca do retorno à forma, constatamos que esta característica foi antes de tudo uma forma de se completar, tendo como referência moldes anteriormente proferidos por outras estéticas passadistas. É o que nos revela um representante da era em questão, representado por João Cabral de Melo Neto – “o poeta- engenheiro”.


Certamente iremos nos familiarizar com toda essa leva de escritores que representaram a chamada geração de 45, compartilhando de sua trajetória artística e, sobretudo, adentrando seus pressupostos ideológicos e demais características a que lhes são peculiares. Entretanto, não deixaremos o contexto histórico-social vigorado pela época vigente em segundo plano. Apoiados neste intento discorreremos a respeito de alguns fatos que demarcaram tais tempos.


O mundo vivia o período pós-guerra, iniciando-se assim a tão conhecida Guerra Fria, representada por duas grandes potências – Estados Unidos e União Soviética. Esta apoiada em um sistema socialista, e aquela, no capitalismo. Surgiram, pois, dois blocos militares cujo objetivo era apoiá-las – do lado capitalista estava a OTAN, e do outro, o Pacto de Varsóvia. No Brasil, Getúlio Vargas era então destituído do poder por militares que o colocaram neste, embora pouco depois retornara ao comando por meio do voto direto.


Findo seu governo, iniciara uma política desenvolvimentista, desta vez por Juscelino Kubitscheck, pautado pelo lema “cinquenta anos em cinco”. Diante do propósito de desenvolvimento industrial, paralelamente, crescia também as desigualdades sociais e dívidas do país com o exterior. Foi quando Jânio Quadros se elegeu então presidente do Brasil. Como se vê, o período compreendido entre 1945 e 1960 foi marcado por grandes transformações de cunho político. Não diferente ocorreu com a vida cultural, haja vista o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia, revelando grandes talentos, o desenvolvimento da arte cinematográfica, representado por Dercy Gonçalves, Grande Otelo e demais representantes. O rádio apresentava importantes figuras, como, por exemplo, Emilinha Borba, Cauby Peixoto, Ângela Maria e o inesquecível Elvis Presley. Não deixando de mencionar a Bossa Nova,
concebida como instrumento de exportação, na figura de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Arraigados neste conjunto de informações, voltemos agora a enfatizar sobre as características que perfizeram a presente geração. Ressaltamos o fato de que tal período foi caracterizado por um forte ciclo de renovação, tanto na prosa quanto na poesia, extremamente marcadas pelas pesquisas formais e personalizadas por seus autores, cada um deles com características próprias.


Na prosa, na qual Guimarães Rosa foi mestre, percebemos que o elemento norteador foi o regionalismo, no entanto, diferentemente do regionalismo cultuado pela geração de 30, conferido por uma visão crítica. Este, por sua vez, foi representado por acentuadas inovações temáticas e linguísticas. Ressalta-se também a poesia intimista que, agora se mostra mais adensada, voltando-se para uma intensa investigação psicológica, muito bem representada por Clarice Lispector. Quanto à pintura e escultura, estas se caracterizaram pela representação realista das figuras, acentuada pelo hiper-realismo, em detrimento das abstrações figuradas pela arte moderna.

http://www.portugues.com.br/literatura/geracao-1945/a-geracao-1945---um-retorno-forma-.htmlFONTE: 

sábado, 17 de setembro de 2011

Vidas secas - Graciliano Ramos


Vidas Secas, de Graciliano Ramos


Análise da obra

Narrado em 3ª pessoa (ao contrário das obras anteriores de Graciliano Ramos), Vidas Secas pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Nesta obra não é a personagem que ressalta nele, mas o narrador que se faz sentir pelo discurso indireto, construído em frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre em períodos simples. A obra pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Possui 13 capítulos até certo ponto autônomos, mas que se ligam pela repetição de alguns motivos e temas, como a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.
O que une os episódios no livro é a utilização de vários motivos recorrentes (a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.), que dada a sua redundância e a maneira como são distribuídos, chegam a constituir um verdadeiro substituto da ação e da trama do livro.
Também as personagens são focalizadas uma por vez, o que mostra o afastamento existente entre elas. Cada uma tem sua vida particular, acentuando-se a solidão em que vivem. Vidas Secas é, portanto, a dramática descrição de pessoas que não conseguem comunicar-se. Nem os opressores comunicam-se com os oprimidos, nem cada grupo comunica-se entre si. A nota predominante do livro é o desencontro dos seres. Os diálogos são raros e as palavras ou frases que vêm diretamente da boca das personagens são apenas xingatórios, exclamações, ou mesmo grunhidos. A terra é seca, mas sobretudo o homem é seco. Daí o título Vidas Secas. O discurso do narrador é igualmente construído com frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre períodos simples. Escritor extremamente contido, com o pavor da verbosidade, Graciliano prefere a eloqüência das situações fixadas à eloqüência puramente verbal. O que há de libelo no livro se inclui na sua própria estrutura e não em discursos das personagens ou do autor.
Enredo

Capítulo 1 – Mudança
É a história da retirada de uma família, fugindo da seca. Fazem parte dela Fabiano, sua esposa Vitória, dois filhos, caracterizados pelo autor apenas como " menino mais novo" e "o menino mais velho", e a cachorra Baleia (deve-se lembrar que o romance fala em seis viventes, contando com o papagaio que eles comeram por não haver comida por perto). Nesse capítulo temos a descrição da terra árida e do sofrimento da família. As personagens não se comunicam; apenas duas vezes o pai, irritado com o menino mais velho, xinga-o. Essa falta de diálogos permanece por todo o livro, como também a intenção de não dar nome às crianças, para caracterizar a vida mesquinha e sem sentido em que vivem os retirantes, que não têm consciência de sua situação, embora, ainda nesse primeiro capítulo, Fabiano e Vitória sonhem com uma vida melhor: "Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as moas cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão.
Mais adiante é Fabiano quem sonha: "Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinhá Vitória provoca ria a inveja das outras caboclas ... e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria o dono daquele mundo... Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde.
Capítulo 2 - Fabiano 
Mostra o homem embrutecido, mas ainda capaz de analisar a si próprio. Tem a consciência de que mal sabe falar, embora admire os que sabem se expressar. E chega à conclusão de que não passa de um bicho.
Capítulo 3 – Cadeia
Aqui, pela primeira vez, aparece a figura do soldado amarelo, que mais tarde voltará simbolizando a autoridade do governo. Igualmente, pela primeira vez, insinua-se a idéia de que não é apenas a seca que faz de Fabiano e sua família pessoas animalizadas. Ele é preso sem qualquer motivo e toma a analisar sua situação de homem-bicho. Só que, desta vez, não tem mais coragem de sonhar com um futuro melhor. Ao fim do capítulo, temos Fabiano ciente de sua condição de homem vencido e, pior ainda, sem ilusões com relação à vida de seus filhos.
Capítulo 4 - Sinhá Vitória
Se as aspirações do marido resumem-se em saber usar as palavras adequadas a uma situação, a de Vitória é uma cama de couro. Também essa cama será motivo diversas vezes repetido no decorrer da obra, como veremos adiante. Além de ser a personagem que melhor articula palavras e expressões, conseqüência de ser talvez a que mais tem tempo para pensar, uma vez que Fabiano trabalha o dia todo e à noite dorme, sem ter coragem para devaneios ou para falsear sua dura realidade, ela é caracterizada como esperta e descobreque o patrão rouba nas contas do marido (no capítulo Contas).

Capítulo 5 - O Menino Mais Novo
Também ele possui um ideal na vida: o de se identificar ao pai. No início do capítulo: "Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração."
Adiante: "Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano."
Em seguida: "E precisava crescer ficar tão grande como Fabiano, matar cabras à mão de pilão, trazer uma faca de ponta na cintura. Ia crescer espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru."
E finalmente: "Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim, torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicocho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados."
Capítulo 6 - O Menino Mais Velho
"Tinha um vocabulário quase tão minguado coma o da papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia." O nível das aspirações dos componentes da família decresce cada vez mais. O ideal do menino mais velho é o de ter um amigo. A amizade de Baleia já lhe servia: "O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-separa não magoá-lo, sofria a carícia excessiva."
Capítulo 7 – Inverno
Temos a descrição de uma noite chuvosa e os temores e devaneios que desperta na família de Fabiano. A chuva inundava tudo, quase inundava a casa deles também, mas eles sabiam que dentro em pouco a seca tomaria conta de suas vidas outra vez.
Capítulo 8 – Festa
Apresenta primeiramente os preparativos da família, em casa, para ir à festa de Natal na cidade e, em seguida, dirigindo-se à festa. É, senão o mais, um dos mais melancólicos capítulos do livro — quando as personagens centrais da história, em contato com outras pessoas, sentem-se mais humilhadas, mesquinhas e ate mesmo ridículas. Percebem a distância em que se encontram dos demais seres e isso é novo motivo de humilhação para eles. Resta a sinhá Vitória a solução do devaneio: "Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira. unia cama de verdade."

Para Fabiano, não há esperanças: "Fabiano roncava de papo para cima... Sonhava agoniado... Fabiano se agitava. soprando. Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes retinas e ameaçavam-no com facões terríveis."
Capítulo 9 – Baleia
Conta a morte da cachorra. Caíra-lhe o pêlo, estava pele e ossos, o corpo enchera-se de chagas. Fabiano resolve matá-la para aliviar os sofrimentos dela. Os filhos percebem a situação, magoados e feridos por perderem um “irmão”: "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam..."
Já ferida, com os demais membros da família chorando e rezando por ela, Baleia espera a morte sonhando com outro tipo de vida: "Baleia queria dormir Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano. um Fabiano enorme. As crianças se esposariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás gordos, enormes."
Percebe-se, aliás, que dos seis componentes da família, Baleia é quem, ao lado de Vitória, com maior clareza, consegue elaborar seus devaneios.
Capítulo 10 – Contas
É outro capítulo melancólico. Se em Cadeia Fabiano conscientiza-se de que há no mundo homens que, por possuírem uma posição social diferente da dele, podem machucá-lo, se em Festa os familiares percebem sua situação inferior e desajeitada e sentem-se ridículos, agora chegam à conclusão de que pessoas com dinheiro também podem aproveitar-se deles. São duas as reações de Fabiano ao notar-se roubado pelo patrão: primeiro revolta, depois descrença e resignação. Vale a pena ressaltar nesse capítulo que é sinhá Vitória quem percebe que as contas do patrão estão erradas. Ela é caracterizada como a mais arguta e perspicaz dos seis viventes da família.
Capítulo 11 - O Soldado Amarelo
Temos uma descrição mais profunda desta personagem. Observa-se que, fisicamente, é menos forte que Fabiano; moralmente é uma pessoa corrupta, enquanto Fabiano é honesto; contudo é por ele respeitado e temido, por ocupar o lugar de representante do governo.
Capítulo 12 - O Mundo Coberto de Penas
A seca está para chegar outra vez, prenunciando mais miséria e sofrimento. Fabiano faz um resumo de todas as desgraças que têm marcado sua vida. Há muito não sonha mais. Seus problemas agora são livrar-se de certo sentimento de culpa por ter matado Baleia e fugir de novo.
Capítulo 13 – Fuga
Continua a análise de Fabiano a respeito de sua vida. A esposa junta-se a ele e refletem juntos pela primeira vez. Vitória é mais otimista e consegue transmitir-lhe um pouco de paz e esperança por algum tempo. E numa mistura de sonhos, descrenças e frustrações termina o livro. Graciliano Ramos transmite uma visão amarga da vida dos retirantes
Comentários

Vidas Secas começa por uma fuga e acaba com outra. No início da leitura tem-se a impressão de que Fabiano e sua família fogem da seca: "Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram-se as suas desgraças e os seus pavores."
O  último capítulo, Fuga, descreve cena semelhante: "A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços franzidos rezando rezas desesperadas. Encolhido no banto do copiar Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, torturadas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. Mas quando a fazenda se despovoou. viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher; matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao inundo, como negro fugido.
O  romance decorre entre duas situações idênticas, de tal modo que a fim, encontrando o principio, fecha a ação num circulo. Entre a seca e as águas, a vida do sertanejo se organiza, do berço à sepultura, a modo de retorno perpétuo.
Mas será apenas a seca o motivo dessa fuga? Percebemos no romance a descrição de dois mundos: o mundo de Fabiano e o mundo composto pela sociedade. Do primeiro, fazem parte Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia e o papagaio. Do segundo, seu Tomás da bolandeira, o patrão de Fabiano e o soldado amarelo. Tanto as personagens do primeiro grupo como as do segundo vivem na mesma região, sofrendo todas a mesma seca. Por que não foge dela o patrão de Fabiano? Porque ele possui as terras e o dinheiro, porque ele emprega os trabalhadores segundo suas próprias leis, fazendo deles meros escravos sem qualquer direito a uma vida digna e independente. 
Caracterizado como dono e opressor, o patrão não tem necessidade de fugir da seca. De seu Tomás também Fabiano sente-se distante. Porque seu Tomás era culto, sabia comunicar-se com precisão, ao passo que ele, Fabiano, só sabia grunhir e mal articulava uma ou outra palavra.
Se o dinheiro do patrão representa um fator de humilhação para Fabiano, a linguagem de seu Tomás significa a cultura e a educação que Fabiano jamais poderá possuir. E ele se humilha mais uma vez.
Seu Tomás simboliza ainda um status econômico de segurança e conforto. De fato, sinhá Vitória manifesta sempre o desejo de possuir uma cama igual a dele, e esse sonho é a mais alta aspiração que possui. O soldado amarelo, por sua vez, simboliza o governo. Metido num “fuzuê sem motivo”, Fabiano acaba preso. Temos agora um Fabiano não apenas humilhado, mas vencido, consciente de sua situação animalizada dentro de uma sociedade em que os mais fortes sempre vencem os mais fracos. E é por esse mesmo motivo que, no capítulo O Soldado Amarelo, ficando as duas personagens, lado a lado, sem mais ninguém por perto e Fabiano, podendo revidar a injustiça anteriormente sofrida, resolve deixá-lo em paz.
Fabiano entrevê na organização do Estado a entidade que humilha; o representante dessa entidade, às vezes, e até frágil, mas a estrutura condiciona o humilhado à incapacidade de reagir.
Entre os dois mundos que acabamos de descrever “não há um sistema de trocas, senão um mecanismo de opressão e bloqueio”. O que parece ser importante para Graciliano Ramos é denunciar a desigualdade entre os homens, a opressão social, a injustiça. São esses os temas de Vidas Secas, por isso foi dito no início desta análise que o livro não deve ser considerado apenas regionalista. Em momento algum o esmagamento de Fabiano e de sua família é explicado apenas pela seca ou por qualquer fator geográfico.

Já foi feita uma referência anteriormente sobre a consciência de Fabiano quanto à sua condição animalizada na sociedade a que pertence. Affonso Romano de Sant’Ana faz uma aproximação de Fabiano à Baleia, e de sinhá Vitória ao papagaio. Segundo ele, o pensamento de Fabiano, no capítulo que recebe seu nome, passa por três etapas:
"Primeiramente, ele se considera positivamente dizendo: Fabiano, você é um homem’. Depois se estuda com menos otimismo, e considerando mais realisticamente sua situação se corrige ‘— Você é um bicho, Fabiano - Ou seja: um individuo que não sendo exatamente um homem, pelo menos sabia se. safar dos problemas. No entanto. poucas frases adiante, nova alteração se dá em suas considerações. E de homem que se aceitara apenas como um bicho esperto, ele se coloca como um animal: “o corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu.
Decaindo do ponto mais elevado da escala, passando a individuo apenas esperto e depois a um semelhante do animal, Fabiano termina por se aproximar de Baleia, a quem, em contraposição, em seu diálogo-a-um ele considera: “— Você é bicho, Baleia ‘, Nesta frase estaria integrado o sentido duplo do termo “bicho ‘. aplicado a Baleia: animal / esperteza, positivo / negativo. Uma análise mais interessada nestes levantamentos poderia perfilar dentro do livro todos os processos sistemáticos de zoomorfização dos animais, destacando principalmente os verbos e adjetivos conferidos a um e outro elemento numa mesma simbiose metafórica.
A identificação entre sinhá Vitória e o papagaio acentua-se sobretudo no capítulo Sinha Vitória, quando ela tenta perceber o sentido da comparação que seu marido fizera do seu modo de caminhar com o do papagaio: "Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usara nas festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como papagaio, era ridícula."
A partir dai a imagem dos pés de Vitória vai se fundindo à imagem do papagaio, até que estilisticamente a superposição se destaca em frases como essas: Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Aí o adjetivo pobre já não se refere exclusivamente ao papagaio que foi morto para matar a fome da família, mas descreve a própria sinhá Vitória tão “infeliz” como aquele “pobre louro “. No resto do capítulo, o autor usa de um processo de recorrência da imagem da ave, agora ampliando-lhe a área semântica, referindo-se à galinha, especialmente a “galinha pedrês", devorada pela raposa.

Menino de engenho


Análise Literária

Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estréia em romance de José Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova, introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem fortemente o tom crítico esperado na época. 

A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é recriada através da criatividade do gênero nordestino.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiUfjc11Xz6YsQ7Kk_gORHlO0EnJIewjKBUqj4MtPLWDaTaktEikSDCo8rmSqvCrv57VhejZOVRzlZhbhMz_lFyYckrrZjeyObtzgOVlNFzP91o_2aMVolJl-s09p-UjEMOA35lrjVG99g/s320/118007.jpg
Escritor paraibano, incluído nos manuais de literatura como um dos principais representantes do regionalismo nordestino, José Lins do Rego (1901 - 1957) considerou que a primeira fase de sua produção, que chamou de "ciclo da cana-de-açúcar", incluía "Menino de Engenho", "Doidinho", "Banguê", "Usina" e "Fogo Morto". 


Publicado em 1932 e livro de estreia do autor, "Menino de Engenho" tem como narrador-protagonista Carlos Melo. Chamado de Carlinhos pela família, ele conta a sua infância no engenho Santa Rosa, para onde vai após um começo de narrativa trágico: quando tinha quatro anos, o pai assassina a mãe e é internado num hospício.
Propriedade do avô materno, o Coronel José Paulino, o engenho Santa Rosa é onde Carlinhos vai conhecer o mundo. Trata-se de um local marcado pelas dualidades, como o bom comportamento do protagonista com os adultos e a peraltice com as crianças. Isso sem contar sua simpatia pelos humildes empregados. Por isso, chegou a pedir ao cangaceiro Antônio Silvino que o levasse com ele para lutar pelos mais pobres.
Universo dos engenhos de açúcar
O romance também relata o amadurecimento emocional de Carlinhos. Apaixona-se primeiro por duas primas, Lili, que falece ainda criança, e Maria Clara, que morava em Recife e foi passar apenas alguns dias de férias no engenho. Com o casamento da tia Maria, o menino passou a ser cuidado pela tia Sinhazinha, bem mais séria e distante.
A repressão o levou a um estado maior de libertinagem, principalmente sexual. Quando contraiu uma doença venérea aos 12 anos, com Zefá Cajá, a família decidiu enviá-lo a um colégio interno, encerrando o livro, marcado pelo universo sócio-econômico dos engenhos de açúcar, como o misticismo, a religiosidade popular, o cangaço e a atmosfera de decadência de um império econômico.

Muito mais do que uma narrativa estruturalmente delineada, a obra apresenta uma reunião de flashes do passado do próprio autor. Há um notório clima de saudosismo na forma de narrar os episódios. E isso o distancia, por exemplo, de textos de maior crítica social, como "São Bernardo" ou "Vidas Secas", de Graciliano Ramos.
Canto de saudosismo
Criança da cidade, asmática e mimada pelo histórico familiar complicado, Carlinhos passa boa parte do tempo sozinho, caçando passarinhos e aprendendo a se relacionar com o ambiente rural, que vai descobrindo lentamente. Nessa monotonia, o relato de uma enchente, com suas consequências trágicas, representa, sob um prisma infantil e ingênuo, algo que introduz novidades no cotidiano.

O romance pode ser entendido como um canto de saudosismo aos engenhos, caracterizados pelo método de produção de açúcar de cana de forma artesanal. Os engenhos foram depois substituídos pelas usinas, onde o sistema industrial predomina.
Com "Menino de Engenho", José Lins do Rego faz uma ode a uma realidade que já na sua época não existia mais. Com o avanço da civilização industrial, deixam de acontecer as brincadeiras conjuntas entre filhos de proprietários e empregados, as conversas com negras nas cozinhas, as histórias fantásticas e folclóricas e os feitos políticos regados a negociações escusas e balas. Começa a nascer um novo Brasil, no qual as narrativas de Carlinhos são apenas um rito iniciático nordestino permeado de um tom memorialista romântico.
*Oscar D'Ambrosio, jornalista, mestre em artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é crítico de arte e integra a Associação Internacional de Críticos de Artes (Aica - Seção Brasil).

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Análise de FOGO MORTO - José Lins do Rego

Análise da obra


Fogo Morto
 (1943) foi o décimo romance e é a obra-prima de José Lins do Rego. Romance de feição realista, revela o processo de mudanças sociais passados no Nordeste brasileiro, num período desde o Segundo Reinado até as primeiras décadas do século XX.

Na verdade, apesar de sua estrutura literária sólida,
 Fogo Morto é um documento sociológico, que retrata o Nordeste e a oligarquia composta pelos senhores de engenho, ameaçada com a chegada do capital proveniente da industrialização. São engenhos de “fogo morto”, onde decai o patriarcalismo com suas tragédias humanas. O romance é a expressão de uma cultura, pois retrata o mundo da casa grande e o mundo da senzala com as conseqüências sociais do relacionamento de um com o outro.

José Lins do Rego manifesta a tendência regionalista de nossa literatura e de nossa ficção entre 1930 e 1945, configurando a situação política, econômica e social do Brasil. As oligarquias açucareiras são dominadas pelas oligarquias cafeeiras, revelando um sistema político apoiado em acordos de interesses,
mantidos por Estados que se sustentam nos coronéis dos municípios.

Desponta assim um regionalismo novo, diferente do regionalismo romântico: o exotismo e o pitoresco não interessam mais. Surge agora um Brasil doente, com fome, escondido que estava sob uma capa de “civilizado”. Surgem os problemas mais graves: o baixo nível de vida, o banditismo, a superstição, uma população dominada por uma classe minoritária. Esse tipo de regionalismo crítico aparecerá também nas obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. Convém frisar que José Lins do Rego poderia ser colocado sob a bandeira do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre.

O tema central de
 Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. Gira em torno de três personagens empolgantes, que são as três mais fortes personagens da sua criação ficcional. São elas: o mestre José Amaro, o artesão, o major Luís César de Holanda Chacon, o senhor de engenho decadente, e o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, que é, sem dúvida, a maior personagem do livro e de todos os romances de José Lins do Rego.

Linguagem

Quando José Lins do Rego publicou
 Fogo Morto, já não se discutia mais a necessidade de renovar a linguagem literária brasileira na ficção. O compromisso regionalista de José Lins do Rego é sobretudo de âmbito popular, e é exatamente a linguagem popular da Paraíba, isolada de influências externas, conservada em sua autenticidade regional, que o escritor utiliza. É a linguagem dos poetas populares, distribuída, agora, com um ritmo narrativo mais tradicional.

Quando Mário de Andrade, em
 Macunaíma, procurou usar uma língua comum a todas as regiões do Brasil, ele estava consciente de estar realizando um experimento e não de estar criando uma linguagem. Mário apenas mostrou o que poderia e deveria ser a experiência coletiva de um povo.

José Lins traz para a literatura a estilização da linguagem regional com absoluta autenticidade espontânea e pura, colhida na própria fonte, sem influência erudita.
 

Assim, podemos observar essa diretriz no romance
 Fogo Morto: o ritmo fraseológico remontando à mais antiga tradição dos contadores de histórias, que foram os únicos artistas populares do Nordeste. Ora, os romances do ciclo da cana-de-açúcar são, uns mais, outros menos, memorialistas. Essas memórias enraízam-se também na linguagem dos cantadores nordestinos, nessa literatura oral de que o romance de José Lins contém traços marcantes.

Personagens

Cada uma das personagens principais representa, na verdade, uma classe social da população nordestina. As três personagens centrais estão envolvidas no cenário de miséria, doenças, e por uma politicagem e prepotência policial que defendem as minorias fortes e, como saída, o cangaço.

José Amaro -
 Trabalhador branco livre do Nordeste. Revela forte orgulho por ser branco e alta consciência de seu humano. Sabe que é explorado e não quer aceitar; porém não tem alternativa, salvo sua coragem e o apoio ao cangaço.

Coronel Lula de Holanda -
 Figura como representante da aristocracia arruinada dos engenhos. Possuí o orgulho despótico de um senhor feudal, mas perde o poder econômico. Refugia-se na religião, no amor ao passado, sem deixar de lado suas vaidades. Humilhado pela decadência e sofrendo as  pressões do cangaço, isola-se.
Vitorino Carneiro da Cunha - Representa o eterno opositor, corajoso, que aceita todas as lutas, um idealista em defesa dos mais fracos. Plebeu e ao mesmo tempo aristocrata pelo parentesco com o coronel José Paulino, outorga-se o título de capitão.

Freqüentemente fazem-se comparações entre Vitorino e a figura de D. Quixote. De fato, ele tem de D. Quixote o idealismo, a luta pelos fracos e pela justiça (verdadeiro moinho de vento no Nordeste). De Sancho Pança, Vitorino tem sua figura exterior: gordo, alegre, espirituoso, sempre montado em seu burro velho, aceitando pacificamente as perseguições dos moleques, que o chamam de “Papa-Rabo”. Assim, Vitorino representaria um D. Quixote sertanejo, uma das maiores criações de José Lins do Rego.

Tenente Maurício -
 Desempenha o papel do opressor, comandando uma tropa de homens mais temíveis que os próprios cangaceiros.

Negro Passarinho -
 Escravo recém-libertado, tem o vício da bebida.

Coronel José Paulino -
 Senhor de engenho, poderoso e forte, oportunista politicamente.

O Cego Torquato -
 Elemento de ligação do cangaceiro Antônio Silvino.

Antônio Silvino -
 Cangaceiro, apoiado por mestre José Amaro.

Cabra Alípio -
 Extremamente devotado ao cangaço.

Adriana -
 Mulher de Vitorino.

Sinhá -
 Mulher de José Amaro.

D. Amélia -
 Mulher do coronel Lula de Holanda. Representante feminino da aristocracia feudal do Nordeste. Moça prendada, educada na cidade e, agora, presa à tristeza do sertão.

Enredo e estrutura da obra

Narrada em terceira pessoa, a obra é dividida em três partes que se ligam e se completam:
 O mestre José Amaro, O engenho do Seu Lula, e O Capitão Vitorino. Convém destacar o caráter lúdico da composição, já que o autor entrelaça as ações das personagens em todas as partes, revelando a decadência do Engenho Santa Fé e das famílias que lá moravam.

Três novelas interligadas, com a história pungente de três personagens trágicas. É um romance recheado de tristeza. A presença patética do romance é a de Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, figura poderosa, inesquecível. É o romance cheio de loucura, que é uma das obsessões de José Lins, como a morte e o sexo. Em
 Fogo Morto análise e sexo se fundem. A obsessão angustiante do sexo é vencida pela análise da alma humana, naquele áspero mundo de fatalismo e misticismo.  O autor nos envolve com seu estilo lírico, as três personagens entrecruzam-se no espaço e no tempo narrativo. É uma narrativa multifacetada, com pluralidade de visões. É o imenso painel da sociedade rural do Nordeste, na transição da economia mercantil para a economia pré-capitalista. É uma espécie de síntese de toda a obra ficcional de José Lins do Rego. 

Primeira parte

O mestre José Amaro -
 Artesão que lida com couro, mora nas terras do engenho Santa Fé, pertencente ao coronel Lula de Holanda Chacon. O fantasma da decadência econômica – mais sugerida do que descrita – ronda o seu trabalho. José Amaro é um homem amargurado e sofrido que rebela-se contra a prepotência dos senhores de engenho através de uma altivez que beira a arrogância. O desprezo que sente pelos “coronéis” leva-o a engajar-se como informante do bando de cangaceiros chefiado por Antonio Silvino. Assim, ele manifesta sua rejeição aos poderosos e à ordem constituída. 

Contudo, José Amaro tem o coração moldado pelos valores patriarcais dominantes. Por isso, maltrata sua esposa, Sinhá, e sobretudo sua filha, Marta que, com trinta anos, continua solteira e começa a ter agudas convulsões nervosas. Em um dos momentos mais dramáticos de todo o romance, José Amaro espanca longa e violentamente a filha em meio a uma dessas convulsões. A partir de então, Marta vive em estado de torpor, falando coisas sem nexo. Cada vez mais infeliz, o mestre seleiro caminha à noite pelas estradas próximas, ruminando as suas frustrações. O povo da região passa ver nele a encarnação de um lobisomem e o evita cada vez mais.
 

O destino de José Amaro se decide apenas na terceira parte da obra. Sinhá e Marta o abandonam e o artesão percebe sua incapacidade de opor-se às classes dirigentes. Dirige então o seu temperamento violento contra si próprio e suicida-se com o mesmo instrumento que representava sua sobrevivência: a faca de cortar sola.

Segunda parte

O Engenho do Seu Lula -
 Senhor do engenho Santa Fé, que obtivera através do casamento com Amélia, filha do poderoso capitão Tomás Cabral de Melo, “seu” Lula é prepotente e mesquinho,  trata tão mal os escravos que estes, após a Abolição, abandonam em massa a propriedade rural Desinteressado das questões práticas, administra pessimamente o engenho, levando-o a rápido declínio. Face a incapacidade de seu proprietário, o Santa Fé, em dado momento, não produz mais açúcar. A sobrevivência familiar fica restrita à criação de galinhas e à produção de ovos, das quais se encarrega Amélia, a esposa do decrépito coronel.

No entanto, Lula de Holanda Chacon mantém a pose de grande senhor, pose traduzida no cabriolé (pequena carruagem de luxo) com que percorre as estradas, sem cumprimentar ninguém. Autoritário, impede que sua filha Nenén namore um rapaz de origem humilde. Esta, condenada a permanecer solteira, fecha-se sobre si própria e torna-se alvo de riso e deboche da vizinhança. Enquanto isso, alienado dos problemas econômicos que causam a derrocada de seu mundo, Lula entrega-se à práticas místicas, sob influência de Floripes, um negro que era seu afilhado. Como em outros momentos de Fogo morto, o desequilíbrio psíquico decorre do processo de decadência social. Cabe a mulher do senhor de engenho, a compreensão lúcida e triste do fim de tudo:
 Os galos começaram a cantar, o chocalho de um boi no curral batia como toque de sino. O negro saiu e D. Amélia ficou a olhar a noite...Agora ouvia uma cantoria fanhosa, um gemer que abafava o canto dos galos. Da casa de Macário saíam vozes, chorando uma morta. D. Amélia fechou a porta da cozinha. Dentro de sua casa uma coisa pior que a morte. Não havia vozes que amansassem as dores que andavam no coração de seu povo. Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz mortiça da lâmpada de azeite. Caiu nos pés de Deus, com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais pesada que a de Nenén.

Acabara-se o Santa Fé.

Terceira parte

O Capitão Vitorino
 - Personagem cujas origens o vinculam às famílias tradicionais da região açucareira, as quais já pertenceu socialmente, embora hoje seja apenas um pequeno proprietário que vive de maneira modesta. Nas duas primeira partes da obra, o capitão Vitorino é uma figura ridícula, quase grotesca, a ponto de ser denominado de Papa-Rabo pelos moleques. Na terceira parte, contudo, ele se eleva, assumindo a condição de um homem idealista e quixotesco. De Dom Quixote, Vitorino possui o sentido nobre dos gestos e uma percepção limitada da realidade, que o leva investir contra tudo aquilo que lhe parece injustiça, sem medir a força do inimigo, nem pesar as conseqüências de suas ações.. Contesta o poder absoluto dos senhores de engenho, da polícia militar e até dos cangaceiros, defendendo ideais éticos que parecem inviáveis na vida cotidiana da região. Acredita que, pelo poder do voto, possa instaurar uma ordem institucional num meio em que a única lei é o arbítrio dos latifundiários. Trata-se de um liberal humanista, mais preocupado com o uso e abuso da força do que propriamente com os desníveis sociais existentes na sociedade da cana-de-açúcar. Estas faces contraditórias da visão de mundo de Vitorino não lhe retiram a grandeza humana e literária. Ao contrário, fazem parte de sua personalidade multifacetada.

Apesar de sua estrutura sólida,
 Fogo Morto é um documento sociológico, que retrata o Nordeste e a oligarquia composta pelos senhores de engenho, ameaçada com a chegada do capital proveniente da industrialização. São engenhos de "fogo morto", onde decai o patriarcalismo com suas tragédias humanas.

Convém destacar o caráter lúdico da composição que o autor entrelaça as ações das personagens em as partes, revelando a decadência do Engenho Santa Fé e das famílias que lá moravam.