Vidas Secas, de Graciliano Ramos
Análise da
obra
Narrado em 3ª pessoa (ao contrário das obras
anteriores de Graciliano Ramos), Vidas Secas pertence
a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Nesta obra não é a
personagem que ressalta nele, mas o narrador que se faz sentir pelo discurso
indireto, construído em frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre em
períodos simples. A obra pertence a um gênero intermediário entre romance e
livro de contos. Possui 13 capítulos até certo ponto autônomos, mas que se
ligam pela repetição de alguns motivos e temas, como a paisagem árida, a
zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados
das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da
bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.
O que une os episódios no livro é a utilização de vários motivos
recorrentes (a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das
criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente
problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá
Vitória etc.), que dada a sua redundância e a maneira como são distribuídos,
chegam a constituir um verdadeiro substituto da ação e da trama do livro.
Também as personagens são focalizadas uma por vez, o que mostra o
afastamento existente entre elas. Cada uma tem sua vida particular,
acentuando-se a solidão em que vivem. Vidas Secas é, portanto, a dramática
descrição de pessoas que não conseguem comunicar-se. Nem os opressores
comunicam-se com os oprimidos, nem cada grupo comunica-se entre si. A nota
predominante do livro é o desencontro dos seres. Os diálogos são raros e as
palavras ou frases que vêm diretamente da boca das personagens são apenas
xingatórios, exclamações, ou mesmo grunhidos. A terra é seca, mas sobretudo o
homem é seco. Daí o título Vidas Secas. O discurso do narrador é igualmente construído com frases curtas,
incisivas, enxutas, quase sempre períodos simples. Escritor extremamente
contido, com o pavor da verbosidade, Graciliano prefere a eloqüência das
situações fixadas à eloqüência puramente verbal. O que há de libelo no livro se
inclui na sua própria estrutura e não em discursos das personagens ou do autor.
Enredo
Capítulo 1 – Mudança
É a história da retirada de uma família, fugindo da seca. Fazem
parte dela Fabiano, sua esposa Vitória, dois filhos, caracterizados pelo autor
apenas como " menino mais novo" e "o menino mais velho", e
a cachorra Baleia (deve-se lembrar que o romance fala em seis viventes,
contando com o papagaio que eles comeram por não haver comida por perto). Nesse
capítulo temos a descrição da terra árida e do sofrimento da família. As
personagens não se comunicam; apenas duas vezes o pai, irritado com o menino
mais velho, xinga-o. Essa falta de diálogos permanece por todo o livro, como
também a intenção de não dar nome às crianças, para caracterizar a vida
mesquinha e sem sentido em que vivem os retirantes, que não têm consciência de
sua situação, embora, ainda nesse primeiro capítulo, Fabiano e Vitória sonhem
com uma vida melhor: "Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as
moas cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos
que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa
confusão.
Mais adiante é Fabiano quem sonha: "Sinhá Vitória vestiria
uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as
nádegas bambas de sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinhá
Vitória provoca ria a inveja das outras caboclas ... e ele, Fabiano, seria o
vaqueiro, para bem dizer seria o dono daquele mundo... Os meninos se espojariam
na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A
caatinga ficaria verde.
Capítulo 2 - Fabiano
Mostra o homem embrutecido, mas ainda capaz de analisar a si
próprio. Tem a consciência de que mal sabe falar, embora admire os que sabem se
expressar. E chega à conclusão de que não passa de um bicho.
Capítulo 3 – Cadeia
Aqui, pela primeira vez, aparece a figura do soldado amarelo, que
mais tarde voltará simbolizando a autoridade do governo. Igualmente, pela
primeira vez, insinua-se a idéia de que não é apenas a seca que faz de Fabiano
e sua família pessoas animalizadas. Ele é preso sem qualquer motivo e toma a
analisar sua situação de homem-bicho. Só que, desta vez, não tem mais coragem
de sonhar com um futuro melhor. Ao fim do capítulo, temos Fabiano ciente de sua
condição de homem vencido e, pior ainda, sem ilusões com relação à vida de seus
filhos.
Capítulo 4 - Sinhá Vitória
Se as aspirações do marido resumem-se em saber usar as palavras
adequadas a uma situação, a de Vitória é uma cama de couro. Também essa cama
será motivo diversas vezes repetido no decorrer da obra, como veremos adiante.
Além de ser a personagem que melhor articula palavras e expressões,
conseqüência de ser talvez a que mais tem tempo para pensar, uma vez que
Fabiano trabalha o dia todo e à noite dorme, sem ter coragem para devaneios ou
para falsear sua dura realidade, ela é caracterizada como esperta e descobreque
o patrão rouba nas contas do marido (no
capítulo Contas).
Capítulo 5 - O Menino Mais Novo
Também ele possui um ideal na vida: o de se identificar ao pai. No
início do capítulo: "Naquele momento Fabiano lhe causava grande
admiração."
Adiante: "Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse?
Precisava mostrar que podia ser Fabiano."
Em seguida: "E precisava crescer ficar tão grande como
Fabiano, matar cabras à mão de pilão, trazer uma faca de ponta na cintura. Ia
crescer espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos
de couro cru."
E finalmente: "Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria
no pátio assim, torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com
barbicocho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados."
Capítulo 6 - O Menino Mais Velho
"Tinha um vocabulário quase tão minguado coma o da papagaio
que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e
Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava
simpatia." O nível das aspirações dos componentes da família decresce cada
vez mais. O ideal do menino mais velho é o de ter um amigo. A amizade de Baleia
já lhe servia: "O menino continuava a abraçá-la. E Baleia
encolhia-separa não magoá-lo, sofria a carícia excessiva."
Capítulo 7 – Inverno
Temos a descrição de uma noite chuvosa e os temores e devaneios
que desperta na família de Fabiano. A chuva inundava tudo, quase inundava a
casa deles também, mas eles sabiam que dentro em pouco a seca tomaria conta de
suas vidas outra vez.
Capítulo 8 – Festa
Apresenta primeiramente os preparativos da família, em casa, para ir à festa de
Natal na cidade e, em seguida, dirigindo-se à festa. É, senão o mais, um dos
mais melancólicos capítulos do livro — quando as personagens centrais da
história, em contato com outras pessoas, sentem-se mais humilhadas, mesquinhas
e ate mesmo ridículas. Percebem a distância em que se encontram dos demais
seres e isso é novo motivo de humilhação para eles. Resta a sinhá Vitória a
solução do devaneio: "Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a
cama de seu Tomás da bolandeira. unia cama de verdade."
Para Fabiano, não há esperanças: "Fabiano
roncava de papo para cima... Sonhava agoniado... Fabiano se agitava. soprando.
Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes
retinas e ameaçavam-no com facões terríveis."
Capítulo 9 – Baleia
Conta a morte da cachorra. Caíra-lhe o pêlo, estava pele e ossos, o corpo enchera-se de chagas.
Fabiano resolve matá-la para aliviar os sofrimentos dela. Os filhos percebem a
situação, magoados e feridos por perderem um “irmão”: "Ela era como uma
pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferenciavam..."
Já ferida, com os demais membros da família chorando e rezando por
ela, Baleia espera a morte sonhando com outro tipo de vida: "Baleia
queria dormir Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de
Fabiano. um Fabiano enorme. As crianças se esposariam com ela, rolariam com ela
num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás
gordos, enormes."
Percebe-se, aliás, que dos seis componentes da família, Baleia é
quem, ao lado de Vitória, com maior clareza, consegue elaborar seus devaneios.
Capítulo 10 – Contas
É outro capítulo melancólico. Se em Cadeia Fabiano conscientiza-se de
que há no mundo homens que, por possuírem uma posição social diferente da dele,
podem machucá-lo, se em Festa os familiares percebem sua
situação inferior e desajeitada e sentem-se ridículos, agora chegam à conclusão
de que pessoas com dinheiro também podem aproveitar-se deles. São duas as reações
de Fabiano ao notar-se roubado pelo patrão: primeiro revolta, depois descrença
e resignação. Vale a pena ressaltar nesse capítulo que é sinhá Vitória quem
percebe que as contas do patrão estão erradas. Ela é caracterizada como a mais
arguta e perspicaz dos seis viventes da família.
Capítulo 11 - O Soldado Amarelo
Temos uma descrição mais profunda desta personagem. Observa-se
que, fisicamente, é menos forte que Fabiano; moralmente é uma pessoa corrupta,
enquanto Fabiano é honesto; contudo é por ele respeitado e temido, por ocupar o lugar de representante do
governo.
Capítulo 12 - O Mundo Coberto de Penas
A seca está para chegar outra vez, prenunciando mais miséria e
sofrimento. Fabiano faz um resumo de todas as desgraças que têm marcado sua
vida. Há muito não sonha mais. Seus problemas agora são livrar-se de certo sentimento
de culpa por ter matado Baleia e fugir de novo.
Capítulo 13 – Fuga
Continua a análise de Fabiano a respeito de sua vida. A esposa
junta-se a ele e refletem juntos pela primeira vez. Vitória é mais otimista e
consegue transmitir-lhe um pouco de paz e esperança por algum tempo. E numa
mistura de sonhos, descrenças e frustrações termina o livro. Graciliano Ramos
transmite uma visão amarga da vida dos retirantes
Comentários
Vidas Secas começa
por uma fuga e acaba com outra. No início da leitura tem-se a impressão de que
Fabiano e sua família fogem da seca: "Entrava dia e saía dia. As noites
cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas
pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os
fugitivos agarraram-se, somaram-se as suas desgraças e os seus pavores."
O último capítulo, Fuga, descreve cena semelhante:
"A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se
tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços franzidos rezando rezas desesperadas.
Encolhido no banto do copiar Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas
secas se pulverizavam, torturadas pelos redemoinhos, e os garranchos se
torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham
desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E
Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. Mas quando a fazenda se despovoou.
viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher; matou o bezerro
morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se
despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe
restava jogar-se ao inundo, como negro fugido.
O romance decorre entre duas situações idênticas, de tal
modo que a fim, encontrando o principio, fecha a ação num circulo. Entre a seca
e as águas, a vida do sertanejo se organiza, do berço à sepultura, a modo de
retorno perpétuo.
Mas será apenas a seca o motivo dessa fuga? Percebemos no romance
a descrição de dois mundos: o mundo de Fabiano e o mundo composto pela
sociedade. Do primeiro, fazem parte Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais
velho, o menino mais novo, Baleia e o papagaio. Do segundo, seu Tomás da
bolandeira, o patrão de Fabiano e o soldado amarelo. Tanto as personagens do
primeiro grupo como as do segundo vivem na mesma região, sofrendo todas a mesma
seca. Por que não foge dela o patrão de Fabiano? Porque ele possui as terras e
o dinheiro, porque ele emprega os trabalhadores segundo suas próprias leis,
fazendo deles meros escravos sem qualquer direito a uma vida digna e
independente.
Caracterizado como dono e opressor, o patrão não tem necessidade
de fugir da seca. De seu Tomás também Fabiano sente-se distante. Porque seu
Tomás era culto, sabia comunicar-se com precisão, ao passo que ele, Fabiano, só
sabia grunhir e mal articulava uma ou outra palavra.
Se o dinheiro do patrão representa um fator de humilhação para
Fabiano, a linguagem de seu Tomás significa a cultura e a educação que Fabiano
jamais poderá possuir. E ele se humilha mais uma vez.
Seu Tomás simboliza ainda um status econômico de segurança e
conforto. De fato, sinhá Vitória manifesta sempre o desejo de possuir uma cama
igual a dele, e esse sonho é a mais alta aspiração que possui. O soldado amarelo, por sua
vez, simboliza o governo. Metido num “fuzuê sem motivo”, Fabiano acaba preso.
Temos agora um Fabiano não apenas humilhado, mas vencido, consciente de sua
situação animalizada dentro de uma sociedade em que os mais fortes sempre
vencem os mais fracos. E é por esse mesmo motivo que, no capítulo O Soldado Amarelo, ficando as duas
personagens, lado a lado, sem mais ninguém por perto e Fabiano, podendo revidar
a injustiça anteriormente sofrida, resolve deixá-lo em paz.
Fabiano entrevê na organização do Estado a entidade que humilha; o
representante dessa entidade, às vezes, e até frágil, mas a estrutura
condiciona o humilhado à incapacidade de reagir.
Entre os dois mundos que acabamos de descrever “não há um sistema
de trocas, senão um mecanismo de opressão e bloqueio”. O que parece ser
importante para Graciliano Ramos é denunciar a desigualdade entre os homens, a
opressão social, a injustiça. São esses os temas de Vidas Secas, por isso foi dito no início
desta análise que o livro não deve ser considerado apenas regionalista. Em momento
algum o esmagamento de Fabiano e de sua família é explicado apenas pela seca ou
por qualquer fator geográfico.
Já foi feita uma referência anteriormente sobre a
consciência de Fabiano quanto à sua condição animalizada na sociedade a que
pertence. Affonso Romano de Sant’Ana faz uma aproximação de Fabiano à Baleia, e
de sinhá Vitória ao papagaio. Segundo ele, o pensamento de Fabiano, no capítulo
que recebe seu nome, passa por três etapas:
"Primeiramente, ele se considera positivamente dizendo: —Fabiano, você é um
homem’. Depois se estuda com menos otimismo, e considerando mais
realisticamente sua situação se corrige ‘— Você é um bicho, Fabiano - Ou seja: um individuo que
não sendo exatamente um homem, pelo menos sabia se. safar dos problemas. No
entanto. poucas frases adiante, nova alteração se dá em suas considerações. E
de homem que se aceitara apenas como um bicho esperto, ele se coloca como um
animal: “o corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os
braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu.
Decaindo do ponto mais elevado da escala, passando a individuo
apenas esperto e depois a um semelhante do animal, Fabiano termina por se
aproximar de Baleia, a quem, em contraposição, em seu diálogo-a-um ele
considera: “— Você é bicho, Baleia ‘, Nesta frase estaria
integrado o sentido duplo do termo “bicho ‘. aplicado a Baleia: animal /
esperteza, positivo / negativo. Uma análise mais interessada nestes
levantamentos poderia perfilar dentro do livro todos os processos sistemáticos
de zoomorfização dos animais, destacando principalmente os verbos e adjetivos
conferidos a um e outro elemento numa mesma simbiose metafórica.
A identificação entre sinhá Vitória e o papagaio acentua-se
sobretudo no capítulo Sinha Vitória, quando ela tenta perceber o sentido da comparação que seu marido
fizera do seu modo de caminhar com o do papagaio: "Ressentido, Fabiano
condenara os sapatos de verniz que ela usara nas festas, caros e inúteis.
Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como papagaio, era
ridícula."
A partir dai a imagem dos pés de Vitória vai se fundindo à imagem
do papagaio, até que estilisticamente a superposição se destaca em frases como
essas: Olhou os pés novamente.
Pobre do louro. Aí o adjetivo pobre já não se refere exclusivamente ao papagaio que foi morto para
matar a fome da família, mas descreve a própria sinhá Vitória tão “infeliz”
como aquele “pobre louro “. No resto do capítulo, o autor usa de um processo de
recorrência da imagem da ave, agora ampliando-lhe a área semântica,
referindo-se à galinha, especialmente a “galinha pedrês", devorada pela
raposa.