Conta a história romântica de Lucíola e Paulo. Lucíola é uma cortesã de
luxo do RJ em 1855. E Paulo um rapaz do interior que veio para o Rio para
conhecer a Corte.
Na primeira vez que Paulo viu Lúcia, julgou ela como meiga e angélica,
mesmo seu amigo Couto contando barbaridades sobre ela e revelando a sua
verdadeira profissão, Paulo manteve essa imagem em seu coração.
Descobrindo sua casa, Paulo foi visitá-la, e sendo as circunstâncias
favoráveis, ela entregou-se a ele como no mais belo ato. Depois disto, Lúcia
passou a ser vulgar e mesquinha, desprezando o amor de Paulo, bem como havia
dito Couto a respeito dos modos da moça.
Paulo então viu Lúcia com outros homens, como Jacinto, e sentiu ciúmes,
mas Lúcia justificou alegando ser ele apenas um negociante.
Em uma festa a que tanto Paulo quanto Lúcia estavam presentes, todos os
convidados beberam e jogaram a vontade, tanto os homens quanto as mulheres. Nas
paredes havia quadros de mulheres nuas, e como era Lúcia uma prostituta, a
pedido e pagamento dos cavalheiros, ela ficou nua diante dos presentes.
Para Paulo aquela não era a imagem que ele havia visto na casa e na cama
de Lúcia, esta era repugnante e vulgar, aquela bela e fantástica, não era Lúcia
que ali estava, aquela jovem meiga que conhecera, e sim Lucíola, a prostituta
mais cobiçada do Rio de Janeiro.Então Paulo retirou-se, alegando que já havia
visto paisagens melhores.
Lúcia arrependeu-se do que fez e eles se reconciliaram. Paulo a amava
desesperadamente de forma bela e pura, Lúcia em seus conturbados sentimentos,
decidiu então dedicar-se inteiramente a esse amor para que sua alma fosse
purificada por ele.
Então vendeu sua luxuosa casa e foi morar em uma menor e mais modesta. E
contou a Paulo sua história: Seu nome verdadeiro era Maria da Glória e,
quando em 1850 houve um surto de febre amarela, toda sua família caiu doente,
do pai à irmãzinha.
Para poder pagar os medicamentos necessários para salvá-los, Lúcia se
deixou levar por Couto, quem a partir disso ela passou a desprezar
profundamente. Nessa época ela tinha 14 anos, e seu pai, ao descobrir, a
expulsou de casa. Ela fingiu então sua própria morte quando sua amiga Lúcia
morreu, e assumiu este nome.
Agora, com o dinheiro que conseguia, pagava os estudos de Ana, sua irmã
mais nova. Paulo ficou muito comovido com a historia de Lúcia. Ele sempre a
visitava e numa noite de amor ela engravidou, mas adoeceu. Lúcia acreditava que
a doença era devido ao fato de seu corpo não ser puro.
Confessou seu amor a Paulo e que pertencia a ele, queria que Paulo
casasse com Ana, que tinha vindo morar com eles. Paulo recusou-se assim como
Lúcia também recusou o aborto. E por isso ela morreu.
Após 5 anos, Ana passou a ser como uma filha para Paulo, que a amparava.
E 6 anos depois da morte de Lúcia, Ana casou-se com um homem de bem e Paulo
continuou triste com a morte do único amor da sua vida.
Lucíola é um romance urbano, em que Alencar transforma a cortesã em
heroína, esta purifica sua alma com o amor de Paulo. Ela não se permite amar,
por seu corpo ser sujo e vergonhoso, e ao fim da vida, quando admite seu amor,
declara-se pertencente a Paulo. É a submissão do amor romântico, onde a
castidade valorizada.
Percebe-se também uma crítica social e moral ao preconceito. O romance
causou comentários na sociedade. Paulo se viu dividido entre o amor e o
preconceito. A atração física superou essa barreira, mas até o final ela se
sentia indigna do amor de Paulo e do sentimento de igualdade que deveria
existir entre os amantes.
Análise
Lucíola é o quinto romance de Alencar e o primeiro da trilogia que
ele denominou de "perfis de mulheres" (Lucíola, Diva e Senhora).
Situa-se entre seus romances urbanos que representam um levantamento da nossa
vida burguesa do século passado. A obra, publicada em 1862, é um romance de
amor bem ao sabor do Romantismo, muito embora uma ou outra manifestação do
estilo Realista aí se faça presente. Trata-se de um romance de "primeira
pessoa", ou seja, o narrador da história é um personagem importante da
mesma, Paulo Silva. E ele a narra em cartas dirigidas a uma senhora, G. M.
(pseudônimo de Alencar), que as publica em livro com o título de Lucíola.
Fixam o Rio de Janeiro da época, com a sua fisionomia burguesa e
tradicional, com uma sociedade endinheirada que freqüentava o Teatro Lírico,
passeava à tarde na Rua do Ouvidor e à noite no Passeio Público, morava no
Flamengo, em Botafogo ou Santa Teresa e era protagonista de dramas de amor que
iam do simples namoro à paixão desvairada.
Em todos os romance urbanos, Alencar aborda o amor como tema central. Ou, para
ser mais exato, "aborda a situação social e familiar da mulher, em face do
casamento e do amor". Mas o amor como o entendia a mentalidade romântica
da época, um amor sublimado, idealizado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de
heroísmos e até de crimes, mas redimindo-se pela própria força acrisoladora de
sua intensidade e de sua paixão.
Subjetivismo - O mundo do romântico gira em torno de seu
"eu": do que ele sente, do que ele pensa, do que ele quer. Por isso o
poeta e o personagem na ficção romântica estão em contínua desarmonia com os
valores e imposições da sociedade e/ou da família.
Em Lucíola encontram-se pelo menos duas grande manifestações
desse subjetivismo romântico.
A primeira grande manifestação de subjetivismo está na própria estrutura
narrativa do romance. Trata-se de um romance de "primeira pessoa", em
que a história é narrada do ponto de vista de uma só pessoa. No caso, Paulo.
Tudo gira em torno do que ele viu, pensou, sentiu junto a Lúcia. Tudo,
portanto, muito individual. Já no capítulo I, Paulo esclarece que escreveu
essas páginas para se justificar perante uma senhora que estranhou "a
minha (dele)excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que
escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagância."
Para isso , "escrevi as páginas que lhe envio, as quais a senhora dará
um título e o destino que merecerem. É um "perfil de mulher" apenas
esboçado."
A segunda considerável manifestação de subjetivismo está na oposição indivíduo
x sociedade. No romance, Paulo e Lúcia ora se insurgem contra as convenções
sociais: "Que me importa o que pensam a meu respeito?", ora
satisfazem essas mesmas convenções, embora sempre reafirmando o próprio
"eu" e fazendo a sua personalidade.
- "... Há certas vidas que não se
pertencem, mas à sociedade onde existem. Tu és um celebridade pela
beleza. O público, em troca do favor e admiração e que cerca os sue ídolos,
pede-lhes conta de todas as sua ações. Quer saber por que agora andas tão
retirada."
- "Ah! esquecia que uma mulher
como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro de praça que não pode
recusar quem chega..."
Exaltação do amor - Em Lucíola, a temática central está
exatamente na exaltação do amor como força purificadora, capaz de transformar
uma prostituta numa amante sincera e fiel.
"- o amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há' mulheres
que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e envelhecer, remoça
como natureza quando volta a primavera."
"Tive força para sacrificar-lhes
outrora o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que não
teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não sei o que sou, sei
que começo a viver, que ressuscitei agora., disse Lúcia após sentir a afeição
de Paulo."
E o romance termina com esta patética exaltação do amor, balbuciada por uma
prostituta regenerada por esse mesmo amor, momentos antes de sua morte: "Eu
te amei desde o momento em que te vi! Eu te amei por séculos nestes poucos dias
que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes,
amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com
todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a
eternidade."
Amor e morte - O romance é impregnado da ideia de morte pois Lúcia
está continuamente a se queixar de uma doença misteriosa que Paulo não
compreende nem aceita, supondo-se tratar-se de refinada desculpa para não se
entregar a ele sexualmente. Lúcia não acredita nem admite que uma mulher como
ela possa usufruir das alegrias e gozos do amor conjugal, dando ao esposo "o
mesmo corpo que tantos outros tiveram". Seria uma profanação do
verdadeiro amor. "O amor!... o amor para uma mulher como eu seria
a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro amor
d'alma."
Diante, portanto, da impossibilidade de realização de um amor puro, só resta a
Lúcia, como personagem de um romance genuinamente romântico, uma saída: a
morte. Nem mesmo um filho ela merece, pois seria o fruto de um amor
vilipendiado. "Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da minha
culpa! Mas sinto que ele não poderia viver no meu seio!" E, numa
atitude típica de heroína romântica, Lúcia anseia morrer nos braços do homem
amado: "Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços... Que morte
mais doce podia eu desejar!" "... desejava que fosse
possível morrermos assim um no outro... uma só vida extinguindo-se num só
corpo!". E assim se fez. Morreu ao lado do ser amado,
dizendo-lhe: "vou te amar enfim por toda a eternidade. (...)
Recebe-me... Paulo!"
Sentimentalismo melancólico - Em Lucíola um mínimo
contratempo é o suficiente para lançar Lúcia ou Paulo na mais profunda
tristeza. Numerosas passagens do romance colocam o leitor diante de quadros
profundamente melancólicos. Como esta:
"Foi terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos, todos caíram doentes: só
havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite
e não amanheceu. Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na
penúria; algum dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O
médico, que nos fazia a esmola de tratar, dera uma queda de cavalo e estava
mal. Para cúmulo de desespero, minha tia uma manhã não se pôde erguer da cama; estava
também com a febre. Fiquei só! Uma menina de 14 anos para tratar de seis
doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não
enlouqueci."
E esta outra, onde Lúcia se fez passar por uma amiga morta para aliviar o
sofrimento dos pais: "Lúcia morreu tísica; quando veio o médico
passar o atestado, troquei os nosso nomes., Meu pai leu no jornal o óbito de
sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa sepultura onde ele ia rezar
por mim, e eu pela única amiga que tive neste mundo. Morri pois para o mundo e
para minha família. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se
envergonhavam de sua filha prostituída."
Muitas das atitudes tomadas por Paulo ou Lúcia são próprias de pessoas que se
deixam guiar pelo sentimento. Esta, por exemplo, esquisita e inexplicável de
Lúcia "- Iremos juntos!... murmurou descaindo inerte sobre as
almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo."
Enfim, o romance todo, do início ao fim, está impregnado de uma atmosfera
melancólico-sentimental.
Ilogismo - Os paradoxos, o comportamento ora excêntrico ora dúbio
de Lúcia, ora virtuoso, ora pecaminoso que vai lançando Paulo numa dúvida
angustiante: a própria duplicidade comportamental de Paulo, generoso e
mesquinho, compreensivo e intransigente, correto e pilantra; tudo isso dá à
intriga do romance um atrativo todo especial que, por sua vez, ora atrai ora
aborrece o leitor.
Há ainda outras manifestações de Romantismo no romance, tais como, imaginação e
fantasia, culto da natureza, senso do mistério, exagero. Mas são de
importância secundária.
Lirismo - Há um lirismo bem bucólico nesta passagem de Lucíola: "Sentamo-nos
sobre a relva coberta d flores e à borda de um pequeno tanque natural, cujas
águas límpidas espelhavam a doce serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso
seu crochê e o novelo de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo
para mim. Enquanto ela trabalhava, eu arrancava as flores silvestres para
enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me pela relva para beijar-lhe a ponta da
botina que aparecia sob a orla do vestido."
E nesta outra há graça, ternura, sentimento: "Toquei com os lábios
a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o sopro de minha respiração.
Ana teve um estremecimento íntimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe
da fronte, derramou-se pelas espáduas roseando a branca escumilha."
Gosto pela descrição - Em Lucíola, de quando em quando
aparece a natureza como a aliviar o leitor das tensões dos dramas
humanos.
Quanto à descrição dos personagens, Alencar parece se preocupar antes com o
aspecto externo para depois chegar ao temperamento. Antes mesmo de o
leitor saber quem era ela, já Alencar lhe mostrou o retrato de Lúcia no
capítulo II: "Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de
suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo
castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos,
que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada.
Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de
tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa
aparição." Na passagem seguinte Alencar como que nos conduz do
exterior ao interior de Lúcia: "O rosto suave e harmonioso, o colo e as
espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre
formas divinas. A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a
atitude modesta e quase íntima, e a singeleza das vestes níveas e
transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir
pensamentos calmos, senão puros."
No que concerne ao vestuário feminino é inegável a influência que Balzac
exerceu em Alencar:"Lúcia fitou-se por muito tempo, e chegou-se ao
espelho para dar os últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido
escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver
suas belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe pelo seio
cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar
Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas de
trigo, cingia-lhe a fronte e caía sobre os ombros com a vasta madeixa de
cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que brincavam."
Comparações - As comparações de Alencar, geralmente, referem-se aos
personagens, ora em seus detalhes físicos, ora em seus estados de alma, ora em
seus atributos morais. O segundo termo da comparação é colhido, na esmagadora
maioria das vezes, de elementos da natureza: reino vegetal, animal ou mineral.
Uma confirmação do que se disse está neste pequeno trecho: "Como
as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o
aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia
conservava do mundo a elegância e a distinção que se tinham por assim dizer
impresso e gravado na sua pessoa."
Desarmonias - Em Lucíola, a luxúria do velho Couto, e mais tarde a
prática do vício, torcem a personalidade de Lúcia. A forma refinada desse
sentimento da discordância é certa preocupação com o desvio do equilíbrio
fisiológico ou psíquico. Relembre-se a depravação com que Lúcia se estimula e
castiga ao mesmo tempo, e cujo momento culminante é a orgia promovida por Sá -
orgia espetacular, com tapetes de pelúcia escarlate, quadros vivos obscenos,
flores e meia luz, ultrapassando o realismo qualquer outra cena em nossa
literatura séria.
Dentre muitos exemplos que se poderiam dar de "desarmonia" de
situações, está o contraste entre Maria da Glória e Lúcia: aquela, pobre,
simples, escondida; esta, rica, caprichosa, pública. Mas isso já é um conflito
entre o passado e o presente.. Porém, os contrastes mais importantes na técnica
narrativa do livro são aqueles relacionados com pessoas e sentimentos. De Paulo
e Lúcia, naturalmente.
A mesma Lúcia que compôs recatadamente o roupão ante os olhos ávidos e
voluptosos de Paulo que vislumbravam o simples contorno de um seio foi capaz de
desfilar nua na ceia em casa do Sá. Ela é assim: contraditória. Ama e odeia.
Atira-se ao vício e tende para a virtude, segundo suas próprias palavras: "Eis
a minha vida... deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da depravação;
contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima, sentia que eu
não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Ficaram gravados no meu
coração certos germes de virtudes..."
Também Paulo apresenta um comportamento paradoxal. Ora ele deseja violentamente
Lúcia ora promete respeitá-la. Ofende-a e pede-lhe perdão; dá-lhe liberdade e a
quer só para si; despreza-a e sente dela pungente ciúme; vê nela uma prostituta
refinada e uma menina de quinze anos, pura e cândida. Também Paulo é
contraditório: vil e magnânimo, como todo bípede implume e social chamado
homem.
Técnica narrativa - Lucíola é um romance de
primeira pessoa, ou seja, quem narra a história não é Alencar diretamente. Ele
o faz por meio de um personagem que viveu os episódios. No caso, esse
personagem narrador é Paulo, que em cartas dirigidas a uma senhora (por quem o
autor se faz passar) conta uma história de amor acontecida há seis anos entre
ele e Lúcia. A senhora reuniu as cartas e delas fez o livro. "Eis
o destino que lhes dou; quanto ao título, não me foi difícil achar. O nome da
moça, cujo perfil o senhor me desenhou com tanto esmero, lembrou-me o nome de
um inseto. "Lucíola" é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão
viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem verdadeira da
mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d'alma?"
No capítulo I, o narrador explica a razão das cartas: "A senhora
estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência
pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu
luxo e extravagâncias".
Na estrutura narrativa de Lucíola, portanto, pode-se observar o seguinte:
1. há um autor real, José de Alencar;
2. um autor fictício, a senhora G. M., destinatária das cartas de Paulo.
3. Um narrador, Paulo, com a incumbência e o privilégio de ordenar os fatos,
comentá-los e tirar-lhes conclusões.
À medida que transmite os fatos, vai fornecendo ao leitor elementos para a
análise de Lúcia e dele mesmo. No romance os fatos são apresentados sob dois
pontos de vista, dois ângulos diferentes: o de Paulo/personagem que transmite
ao leitor as sensações vividas com Lúcia e o de Paulo/narrador que, por vezes,
interrompe a narrativa fazendo reflexões ou dirigindo-se à destinatária de suas
cartas.
O enredo abrange um período de aproximadamente seis meses. Foi o que durou o
namoro do par romântico. Às vezes, o autor avança a narrativa com soluções bem
simples: "Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência
tão agitada, durava cerca de um mês." Em outras, retarda-a:
dedicou três capítulos para a ceia em casa de Sá (capítulos VI, VII e VIII).
Ação - Gira em torno de uma história entre Paulo e Lúcia, com todos
os ingredientes de um romance romântico: heróis e vilões, heroínas
incompreendidas, virgens pálidas e meigas e cortesãs depravadas, a morte como
única saída para um amor verdadeiro porém impossível, etc.
Em Lucíola, o núcleo central da narrativa se concentra em Paulo e Lúcia, ora
como duas individualidades com passado e presente próprios, ora como o
"par romântico". E se concentra com tal intensidade, (afinal o
narrador é exatamente Paulo - o herói, o mocinho - que ama a Lúcia - a heroína)
que os episódios envolvendo os demais personagens ficam totalmente ofuscados.
Tempo -1855 - "A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi
em 1855". Numa leitura atenta, o leitor percebe no livro o Rio de
Janeiro da época de D. Pedro II, com seus salões, sua burguesia, suas vitrinas
chiques na Rua do Ouvidor com mercadorias elegantes vindas de Paris ou Londres,
seus tílburis, seu vestuário, etc.
Como tempo narrativo, ele é eminentemente "cronológico". Ou seja,
em Lucíola os acontecimentos se sucedem numa ordem quase
normal, com uma seqüência natural de horas, dias, meses, anos. Só há um
momento em que o fluxo narrativo retroage: quando Lúcia narra a Paulo seu
passado. (Cap. XVIII e XIX). E em dois momentos ele avança: o capítulo I e o
finalzinho do último revelam o estado de alma de Paulo seis anos após a morte
de sua querida Lúcia: "Terminei ontem este manuscrito, que lhe
envio ainda úmido de minhas lágrimas. (...) Hás seis anos que
ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente."
Lugar - O cenário onde se desenrola a ação é o Rio de Janeiro. Há
referências de seus bairros (Santa Teresa), ruas (das Mangueiras), população,
festas (a da Glória), teatros, lojas elegantes, etc.
É curiosa a relação entre os locais e o comportamento amoroso-sexual de Paulo e
Lúcia, agindo aqueles no sentido de aproximação ou afastamento, de maior ou
menor realização do casal. O quarto de Lúcia é um local de luxúria: "...
e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de
repente uma alcova elegante e primorosamente ornada." Das várias
vezes que eles se uniram sexualmente neste luxuoso aposento, nenhuma, parece,
satisfez de fato o casal. A primeira delas terminou assim: "Ao
delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente
abalada. Vendo então este corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos
crispadas, tive dó."
O segundo encontro já foi totalmente diferente, em local e desfecho. Foi nos
jardins da casa do Dr. Sá, onde Lúcia desfilara nua perante os convidados. O
cenário é bem ao gosto do romantismo: a natureza. O leito é bucólico: "Fomos
através das árvores até um berço de relva coberto por espesso dossel de
jasmineiros em flor. Lúcia está vibrando: "- Sim! Esqueça tudo, e nem se
lembre que já me visse! Seja agora a primeira vez!... Os beijos que lhe
guardei, ninguém os teve nunca! Esse , acredite, são puros!" E o
clímax foi aquele que só um par enamorado consegue haurir do sexo: "Não
fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me possuiu todo, e tanto, que não
me resta daquela noite mais do que uma longa sensação de imenso deleite, na
qual me sentia afogar num mar de volúpia."
Quando Lúcia passou a morar numa casa pequena e pobre, em Santa Teresa, em
companhia de sua irmã Ana, menina inocente, não mais houve união carnal entre
eles. É que os dois já estavam unidos por um amor espiritual. Uma afeição muito
pura unia aquelas duas almas. E tanto a simplicidade do local que "lembra
o espaço feliz de sua infância em São Domingos" quanto a inocência da
menina não comportava mais a depravação do sexo. O seu beijo quase de irmã
apenas de longe em longe bafejava-me a fronte."
Personagens - Em Lucíola uma personagem apresenta
grande complexidade psicológica, a par do idealismo romântico com que foi
concebida:
Lúcia - Sua principal característica é a contradição. Como cortesã
era a mais depravada. Basta que se lembre da orgia romana em casa de Sá. No
entanto, a prostituição era-lhe um tormento constante, já que não se entregava
totalmente a ela. E os atos libidinosos constituíam para ela verdadeira
autopunição aliada à angustiante sentimento de culpa. Coexistem nela duas
pessoas: Maria da Glória, a menina inocente e simples, e Lúcia, a cortesã
sedutora e caprichosa. No livro, sobressai a Lúcia, Lúcifer, onde aparece 348
vezes contra 10 vezes como Maria da Glória, anjo. Tal disparidade realça o
motivo do romance: à proporção que Lúcia vai amando e sendo amada por Paulo,
ela vai assumindo a Maria da Glória, sua verdadeira personalidade. E reencontra
assim, através dele, a dignidade e inocência perdidas. Pode-se expressar essa
duplicidade da seguinte maneira:
Lúcia, mulher, depravação, luxúria, sentimento de culpa, prostituição,
caprichosa, excêntrica, rejeita o amor, demônio.
Maria da Graça, menina, pureza, ingenuidade, dignidade, inocência,
simples, meiga, tende para o amor, anjo. Perdida a virgindade física,
Lúcia, por meio da compreensão e amor de Paulo, tende para a virgindade do espírito. "Elas
não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do
coração!" Para isso renuncia a qualquer amor sensual. Mesmo ao de
Paulo, de quem fora amante e a quem passou a negar um simples beijo. Depois que
ela o conheceu, não se entregou a nenhum outro homem. É por isso que não cria
no amor de Margarida, de A Dama das Camélias, porque ela não negou
ao seu amado Armando o corpo que tantos já haviam comprado.
E Lúcia recupera aos 19 anos a Maria da Glória que perdera aos 14. "Nada
perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito
tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade
interrompida por um longo e profundo letargo. (...) Ninguém diria que essa moça
vivera algum tempo numa sociedade livre."
Mas essa transformação completa
custou-lhe penosos sacrifícios e sobretudo muita incompreensão inicial por
parte de Paulo. "Incompreensível mulher! (...) Compreendo hoje as
rápidas transições que se operavam nessa mulher; mas naquela ocasião, como
podia adivinhar a causa ignota que transfigurava de repente a cortesã depravada
na menina ingênua, ou na amante apaixonada!"
Seus traços físicos: cabelos e olhos pretos, a pele pálida. Sua expressão,
contudo, lembra ao leitor sua dualidade de caráter: o olhar ora é
"eloqüente, raio voluptuoso", ora é límpido, raio de luz de sua
alma". É bem o ideal de beleza romântica, "com sua virgindade
de alma tão pura e tão absoluta, que a não tisnaram os pecados do corpo. Por
isso, mesmo nas horas em que mais lhe esplende a glória de cortesã, o
romancista a veste simbolicamente de branco."
Se algum leitor não entender bem a complexidade da personagem Lúcia, como o fez
Paulo no início do romance, não é de se estranhar, pois afinal ela mesma se
auto-definiu: "É difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa.
Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? Não repare nestas
esquisitices!"
Paulo - É um provinciano de Pernambuco, 25 anos, que veio tentar se
estabelecer no Rio de Janeiro. O romance não esclarece se ele é ou não formado.
Sugere apenas. É o narrador da história e como tal faz desviar a atenção do
leitor para Lúcia e outros aspectos, não revelando certas informações suas. Os
detalhes físico, por exemplo. Coisa, aliás, rara em José de Alencar, tratando-se
de personagem central.
Traçando o perfil de Lúcia, ele acaba por revelar também os eu: espírito
observador e sensível, foi o único a compreender o estranho caráter de Lúcia.
Seu temperamento é reservado sem ser tímido: "... é hábito
meu, desde que entrei no mundo, não admitir os estranhos à intimidade de minha
vida, ainda mesmo quando se trata de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha
alma entre amigos". E como ele não possui reais amigos no Rio,
nuances de sua personalidade conhecem-se por deduções .
Suas reações psicológicas são expressas em suas reflexões: "Que
miserável animalidade havia em mim naquela noite! Quando essa pobre mulher
atingia o sublime do heroísmo e da abnegação, eu descia até a estupidez e à
brutalidade!" Ou nessa: "Não conheço mais estúpido
animal do que seja o bípede implume e social, que chamam homem
civilizado."
A sua caminhada em direção ao amor pela heroína foi lenta. No início, o que o
impelia para ela era atração sexual. Paulo, então, não a entende e transmite ao
leitor suas incertezas e desconfianças. "Se eu amasse essa
mulher... mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa moça uma idéia talvez
falsa... " Tais desconfianças, por vezes, eram-lhe inoculadas
pela sociedade através de alguns representantes - Dr. Sá, Sr. Couto,
Cunha. "Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza são as
molas ocultas que movem este belo autômato de carne." E chega
mesmo a ser violento e sádico com ela. Isto se deduz de várias passagens, como:
"Esta noite a senhora não se pertence: é um objeto, um bem do homem que
a vestiu, que a enfeitou e cobriu de jóias, para mostrar ao público a sua
riqueza e generosidade."Outras vezes, sentiu foi dó: "Sentia
profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto me enterneceu; chorei com
ela." Houve um período em que a afeição de ambos se arrefeceu.
Paulo já a admira e dedica-lhe grande respeito e amizade: "Entramos
então numa nova fase de nossa mútua existência, fase original e curiosa que me
faria rir quinze dias antes. Com efeito, quem poderia julgar possível uma
amizade fraternal e pura entre duas criaturas que meses antes trocavam as mais
ardentes expansões da sensualidade?" Para no final devotar-lhe
sincero amor a ponto de vibrar com um possível filho de ambos: "
-Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás
mãe, minha querida Maria?"
É um ingênuo personagem romântico. Apesar de se declarar pobre e até se vexar
por isso, vive byronicamente, de sonhos, de amor.
Os demais personagens são secundários face aos dois protagonistas.
Dr. Sá e Cunha - Amigos de Paulo, sendo aquele desde a infância.
Encarnam a moral burguesa e suas máscaras: austera com os outros, benigna
consigo. Não possuem personalidade bem delineada no livro. Ambos vêem em Lúcia
apenas a prostituta.
Couto e Rochina - O primeiro é um velho dado a jovem galante.
Encarna a obsessão sexual e a velhice. Representa a sociedade que explora e
corrompe. Foi quem aproveitou a necessidade e inocência de Lúcia. O segundo é
um jovem de 17 anos, tez amarrotada, profundas olheiras, velho prematuro.
Libertino precoce. Eles aparecem assim no romance: "O contraste do
vício que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se
criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso, esforçando-se
por parecer decrépito, para que não o tratassem de menino; essa antítese vivia
devia oferece ao espectador cenas grotescas."
Laura e Nina - São meretrizes, como Lúcia, mas sem sua duplicidade
de caráter. Não são capazes de "descer tão baixo" porém, não possuem
a "nobreza e altivez" da protagonista.
Jesuína e Jacinto - Aquela, é mulher de 50 anos, seca e já
encarquilhada. Foi quem recolheu Lúcia quando seu pai a expulsou de casa e a
iniciou na prostituição. Este, é um homem de 45 anos, e "vive da
prostituição das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos".
Por seu intermédio Lúcia vendia as joias ricas que ganhava e enviava o dinheiro
à família pobre. É quem mantém a ligação misteriosa no livro, entre Lúcia e
Ana. Enfim, é quem cuida dos negócios dela.
Ana - É a irmã de Lúcia, que a fez educar num colégio até os doze
anos como se fosse sua filha. "Era o retrato de Lúcia, com a única
diferença de ter uns longos e de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já
conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre
ambas." Lúcia tenta casá-la com Paulo para ser uma espécie de
perpetuação e concretização de seu amor por ele: "Ana te darias os
castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias
de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo?"
Problemática apresentada - Paulo quer Lúcia, mas ele possui
impedimento de aproximação; Lúcia quer Paulo, mas também possui impedimentos. É
fácil, agora, entender como se arma o conflito do romance: Paulo x Lúcia
- Há motivos de aproximação e de afastamento entre ambos. E do jogo
aproximação-afastamento. Chegamos a uma composição final. A composição é
desejada por ambos, mas é preciso que antes muitas arestas sejam aparadas. Não
é graciosamente que o ser humano se completa a se acha, mas através de muita
luta e muito erro (penitência para superação dos defeitos).
Esta colocação do foco narrativo do romance vem confirmar ideias anteriores,
onde se mostrou que a história de Paulo e Lúcia está vazada de situações desarmônicas.
Tais situações podem ser melhor entendidas quando sintetizadas em algumas
oposições que parecem predominar na obra como ideias centrais. Tais como:
O desnível da situação social - Em Lucíola os
conflitos das personagens e entre personagens são determinados pelo confronto
do indivíduo com essa sociedade. Há um desnível enorme entre a situação social
de Paulo e Lúcia. Esta é prostituta e como tal é vista e rejeitada por todos,
inclusive por Paulo, no início. Trata-se de um impedimento sério na aproximação
de ambos. Tão sério que acaba por impedir a concretização social (casamento,
geração de filhos) do amor do casal. Lúcia errou e deve pagar por isso perante
a sociedade. As convenções da moralidade burguesa e da Escola Romântica assim o
exigem. O casamento com final feliz do romance romântico não se realiza. Lúcia
deve morrer.
Uma das problemáticas centrais levantadas no livro, parece, portanto,
esta: a imposição das convenções sociais, criando obstáculos ao par amoroso,
sacrificando-lhe a realização de um amor que não se adequava aos seus padrões
rigorosos, se bem que por vezes hipocritamente condescendentes.
O conflito entre o bem e o mal - Das muitas oposições enfocadas no
livro, esta é a mais importante, agindo como base do enredo e do foco narrativo.
Trata-se de uma tendência própria do Romantismo que se traduz na
"desarmonia" de situações e sentimentos.
Há uma dualidade no caráter de Lúcia: de um lado a mulher, meretriz, depravada,
desprezada pela sociedade, encarnacão do MAL; de outro, a menina inocente que
ainda teima em substituir nela por mais terríveis que tenham sido os
imperativos do vício naquela alma. É a permanência do BEM. "Havia no
meu coração certos germes de virtude que eu não podia arrancar, e que ainda nos
excessos do vício não me deixavam cometer uma ação vil." E
durante todo o tempo, pretende o autor convencer o leitor da "criatura
angélica" que habita o corpo da pecadora, da "mulher que no
abismo da perdição conserva a pureza d'alma". E é essa Lúcia de
"coração virgem", purificada, que renasce nos últimos capítulos
graças ao amor de Paulo.
A vitória do amor - E chega-se, afinal, à temática básica de Lucíola.
A intriga é calcada em assunto romântico: A situação social da mulher em face
do amor. Do "amor" como o concebe o Romantismo: sublimado, capaz de
renúncias, de sacrifícios, de heroísmos, que está acima dos fatores
sócio-econômicos, que triunfa apesar das convenções sociais.
Em Lucíola, o triunfo do amor não foi na linha do final feliz.
Lúcia passará por um processo de transformação, ou renascimento, que fará
desabrochar a adolescente pura e ingênua que fora um dia, ao mesmo tempo que
irá eliminando a cortesã impudica. E a protagonista alcança, portanto, a
purificação através do amor espiritual, que não pode ser contaminado e
profanado pela mais leve sombra de desejo físico. É a vitória do amor, numa
outra perspectiva. É a temática central do romance: o amor como força
regeneradora.
O romance, na sua intriga e temática, bem como no posicionamento das
personagens, pode ser visualizado graficamente assim: na busca mútua de Lúcia e
Paulo, há personagens que se posicionam como obstáculos, no sentido de impedir
o surgimento do amor dos dois: Couto, Sá, Cunha, Rochinha. Outros são
basicamente neutros: Jesuína, Jacinto, Laura e Nina. E há uma, Ana, que se
coloca no sentido de aproximar o par romântico, a tal ponto de, conforme o
desejo de Lúcia, ser um símbolo de perpetuação, na terra, do amor do casal.
Enredo
Paulo Silva, o personagem-narrador, é um rapaz de 25 anos, pernambucano,
recém-chegado ao Rio de Janeiro, em 1855, com a intenção de aí se
estabelecer.
No dia mesmo de sua chegada à corte (Rio de Janeiro), após o jantar, sai em
companhia de um amigo para conhecer a cidade. Na rua das Mangueiras vê passar
em um carro uma jovem muito bela. Um imprevisto faz parar o carro, dando a
Paulo a oportunidade de repará-la melhor. Dia após, em companhia de outro
amigo, o Dr. Sá, Paulo participa da festa de N. Senhora da Glória, quando lhe
aparece a linda moça. Informando-se do amigo, fica sabendo tratar-se de Lúcia,
a prostituta mais bela, requintada e disputada da cidade. Mas ele se
impressiona com a "expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do
gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelam a cortesã franca e impudente."
Mais ou menos um mês após sua chegada, Paulo vai à procura de Lúcia, levado, é
claro pelo desejo de possuir aquela linda mulher. Após longa e agradável
conversa, acaba se surpreendendo com o "casto e ingênuo perfume que
respirava de toda a sua pessoa". A um mínimo lance de seus seios,
"ela se enrubesceu como uma menina e fechou o roupão" discretamente.
E ele, que fora quente de desejos, agora, na rua, se acha ridículo por não
haver ousado mais. Além do que, o Dr. Sá lhe confirmara que "Lúcia é a
mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de
extravagância."
No dia seguinte Paulo está de volta à casa da heroína. Ao seu primeiro ataque,
Lúcia se opõe com duas lágrima nos olhos. Supondo ser fingimento, mostra-se
aborrecido e ela reage atirando-se completamente nua em seus braços, já
que era isso que Paulo queria. Mas no auge do prazer do sexo, Paulo percebe
algo diferente nas carícias de Lúcia: mesmo no clímax do gozo, parece que ela
sofria. Sente, na hora, um imenso dó, ao que ela corresponde cinicamente:
"- Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve
a velhice às mulheres como eu?" Ele quer pagar-lhe, ela rejeita com um
meigo aperto de mão. E ele retira-se realmente confuso com "a
singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora
esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma
senhora".
E as informações que lhe chegam a seu respeito são as piores. O Cunha diz que
ela é "a mais bonita mulher do Rio e também a mais caprichosa e
excêntrica. Ninguém a compreende. "Nunca fica muito tempo com o mesmo
amante, "pois não admite que ninguém adquira direitos sobre ela."
Além do mais, é avarenta. Vende tudo o que ganha. Até roupas. Para Paulo, no
entanto, ela parece ser ao contrário de tudo isso. Afinal, ela finge para ele
ou já o ama? Paulo fica em dúvida atroz.
Por aqueles dias, numa ceia em casa do Sá, com pessoas (Lúcia, Paulo, Sr.
Couto, Laura, Nina, Rochinha, etc...) maldosamente convidadas para transformar
a ceia em bacanal, Lúcia desfila toda nua, imitando as poses lascivas dos
quadros que estavam nas paredes, ante os olhares voluptuosos dos presentes.
Depois, em lágrimas, nos jardins da casa, ela se explica a Paulo. Fez aquilo
por desespero, pois ele havia zombado dela momentos antes: "se o Senhor
não zombasse de mim, não o teria feito por coisa alguma deste mundo..."E
depois porque teria sido uma decepção total, afinal o que Sá pretendia era
mostrar a seu amigo Paulo quem era Lúcia. "Não foi para isso que se deu
essa ceia?! - explicou Lúcia. E os dois se amaram profundamente, lá mesmo no
jardim, á luz da lua, até de madrugada.
Decorridos alguns dias, Paulo de certo modo passa a morar com Lúcia, e, apesar
das prevenções e restrições, mais e mais se liga a ela por afeto. Lúcia, por
sua vez, já ama Paulo e se entrega e ele como a um dono e senhor. Há momentos
de atritos entre ambos. Passageiros, e todos causados pelo egoísmo e
incompreensão de Paulo que não entende as profundas transformações que o seu
afeto operou nela. E a tal ponto , que ela não suportaria mais a idéia de se
lhe entregar na cama, pois sente por ele um amor muito puro e profundo. E ele,
levado mais por desejo que por afeto, não consegue aceitar esse comportamento
sublime.
As más línguas já comentam que Paulo, além de viver à custa de Lúcia, ainda a
proíbe de frequentar a sociedade. Lúcia que já então procurava viver mais
retraída dispõe-se a voltar à vida mundana apenas para salvar-lhe a
reputação. Mas Paulo - complicado, sádico, estúpido e chato - não
compreende.
Lúcia já não vibra como outrora. Mesmo quando excitada por Paulo. É a doença
que já se faz sentir. Paulo não entende essa frieza e por vezes se exaspera.
Ela sofre calada pois reconhece que "o amor para uma mulher como eu seria
a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe!". O grande
sentimento que os unia, arrefece, dando lugar a uma amizade simplesmente.
O comportamento de Lúcia é cada vez mais sublime e heroico. Já não existe mais
nada da antiga cortesã. E Paulo, por fim, entende essa nobreza de caráter e
compreende o porquê das suas recusas. Ela lhe recusava o corpo porque o amava
em espírito. E também porque já está doente. Paulo promete respeitá-la de ora
em diante.
Lúcia um dia lhe revela todo o seu passado. Chamava-se Maria da Glória. Era uma
menina feliz de 14 anos e morava com os pais, quando, em 1850, sobreveio a
terrível febre amarela. Seus pais, os três irmãos, uma tia caíram de cama, Ela
ficou só. No auge do desespero, resolveu pedir ajuda a um vizinho rico, Sr.
Couto, que em troca de algumas moedas de ouro tirou-lhe a inocência. "o
dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um
raio de esperança." Seu pai, porém, sabendo da origem do dinheiro, e
supondo ter a filha um amante, a expulsou de casa. Sozinha, sem ter aonde ir,
foi acolhida por uma mulher, Jesuína, que, quinze dias depois, à conduziu à
prostituição, estipulando pela beleza de seu corpo um alto preço. O dinheiro,
ela o usava para cuidar do que restava da família: "e eu tive o supremo
alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha
irmã".
Uma colega de infortúnio foi morar com ela. Chamava-se Lúcia. Tornaram-se
amigas. Lúcia morreu pouco depois. No atestado de óbito, a heroína fez constar
que a falecida se chamava Maria da Glória, adotando para si o nome da amiga
morta. "Morri pois para o mundo e para minha família. Meus pais choravam
sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha prostituída." E
todo dinheiro que ganhava, destinava-o à preparação de um dote para sua irmã,
Ana, a qual passou a manter num colégio interno depois da morte dos pais.
Agora Paulo compreende ainda melhor as atitudes misteriosas e contraditórias
que Lúcia tomava como cortesã. É que esse gênero de vida lhe parecia sórdido e
abjeto. Ela suportava como a um martírio, uma autopunição, uma maneira de
reparar o seu pecado. Conhecido se passado heroico, ele passa a sentir por
Lúcia uma grande ternura e um amor sincero.
Seguem-se dias tranquilos. Lúcia muda-se para uma casinha modesta e Ana mora
com ela. "isto não pode durar muito! É impossível!" É o
pressentimento da morte. Lúcia tenta convencer Paulo a se casar com Ana, que já
o ama também. Seria uma maneira de perpetuar o amor de ambos, já que ela se julga
indigna do puro amor conjugal. Paulo rejeita com veemência em nome do
amor que não sente por Ana.
Lúcia aborta o filho que esperava de Paulo. Ela se recusa a tomar remédio para
expelir o feto morto, dizendo "Sua mãe lhe servirá de túmulo". E já
no leito de morte, recebe o juramento de Paulo prometendo-lhe cuidar de Ana
como sua filha. E morre docemente nos braços de seu amado, indo amá-lo por toda
a eternidade.
FONTES: